BELO HORIZONTE — No fim do ano passado, quando começaram a surgir conversas sobre como o Grupo Corpo poderia comemorar seus 50 anos, Paulo Pederneiras, o diretor artístico da companhia de dança, se mostrou um tanto enfadado com a ideia da efeméride. “Que diferença faz se é 49, 50 ou 51? O próximo espetáculo é sempre o mais difícil,” disse.
Alguns meses depois, Paulo não só se rendeu à ideia da celebração como trouxe uma provocação inédita ao grupo. Primeiro pediu à compositora Clarice Assad uma trilha musical para um novo espetáculo. Quando a música ficou pronta, Paulo propôs que Rodrigo, seu irmão e coreógrafo do grupo, criasse a partir dessa trilha uma nova coreografia em parceria com Cassi Abranches. Cassi é ex-bailarina do Corpo, coreógrafa e, vale dizer, nora de Rodrigo.
Aí veio a proposta nada trivial. Paulo não queria que eles seguissem a cartilha da criação em dupla, pela qual o processo é feito conjuntamente. Cada um deles deveria criar seu próprio ballet para a música de Clarice. A fusão se daria depois.
Os 22 bailarinos foram divididos em dois grupos de 11 e passaram a trabalhar separadamente, sem que uma turma tivesse acesso ao ensaio da outra. “Foi uma encrenca legal,” Paulo disse ao Brazil Journal. “Estou pesquisando até agora e não encontrei nenhum caso de criação a dois feita assim,” emenda Cassi.
Dois meses mais tarde, cada coreógrafo tinha sua versão pronta. O dia em que cada grupo de bailarinos dançou sua versão pela primeira vez para o outro foi uma catarse.
Refeitos da emoção, era hora de encarar a parte mais difícil: fundir as duas obras.
“Depois da primeira semana de trabalho, chegamos para o Paulo e falamos: não vai dar. Vamos deixar de lado essa ideia e cada um conserva a sua coreografia,” diz Cassi.
Coube a Paulo se manter firme e bancar o rebuliço que havia proposto. Cassi e Rodrigo seguiram em frente, num exercício que exigiu porções generosas de paciência e humildade.
O fruto dessa parceria é a obra Piracema, que pode ser vista a partir de 13 de agosto em São Paulo – por quem já comprou ingressos, que esgotaram em menos de 48 horas. (A turnê passará também por outras dez cidades.)
A provocação de Paulo foi essencial para aproximar a tradição — representada por ele e seu irmão — da novidade, encarnada por Cassi e pelos jovens bailarinos do grupo.
Daí a escolha também do nome Piracema para o espetáculo, que faz referência ao movimento dos peixes nadando contra a correnteza para desovar seus ovos e permitir que uma nova geração floresça.
O que se verá no palco é uma obra que celebra o passado – com várias referências a peças anteriores do grupo – mas também abre espaço para a mudança.
Nos últimos cinquenta anos, o grupo fundado por Paulo e seus cinco irmãos – Rodrigo, Miriam, Pedro, Marisa e José Luis – entalhou o Brasil no mapa da dança mundial.
Com uma linguagem corporal e cênica brasileiríssima, sendo por tantas vezes tropical mas também urbana, festeira, sensual e até religiosa, a companhia lota salas de espetáculo em mais de quarenta países.
Os movimentos dos bailarinos do Corpo se mostram tão naturais quanto inusitados. Requebrados, rebolados e gingados se repetem e se renovam criando uma teia coreográfica que, por meio da repetição, gera combinações radicalmente diferentes.
No Corpo, é partindo do conhecido que se chega ao novo.
A companhia surgiu no início da década de 70, quando a dança moderna começava a dar as caras em um Brasil às voltas com a ditadura militar.
O nome da companhia veio da vontade de se constituírem enquanto um corpo de pessoas que acreditava muito na capacidade umas das outras. “Assim como há corpo docente, corpo de bombeiros, queríamos ser o Grupo Corpo,” diz Rodrigo.
De cara Paulo trouxe uma ideia ambiciosa. Convidar um compositor para criar uma trilha sonora e, a partir dela, conceber um espetáculo de dança. Rodrigo se lembra de Paulo falar: “Tchaikovski e Stravinsky compunham para os ballets. Por que não podemos ter isso?”
Em 1976, Fernando Brant, amigo da turma, os apresentou a Milton Nascimento. Aos 34 anos, Milton já era Milton e, para surpresa de todos, embarcou na onda.
Com coreografia do argentino Oscar Araiz (de quem Rodrigo foi aluno e pupilo), trilha de Milton e roteiro de Fernando Brant, nasceu a obra Maria Maria.
O espetáculo foi um acontecimento. Nos dois primeiros anos, foi apresentado em 16 países. Os cachês pagaram os empréstimos feitos meses antes para custear a produção. “Se tivesse dado errado, estaríamos fritos,” diz Rodrigo.
Deu muito certo. Os Pederneiras construíram algo ímpar no universo da dança brasileira: uma companhia com elenco fixo, formada por bailarinos que são tratados como profissionais da dança e remunerados por isso.
O sucesso de Maria Maria permitiu ao Corpo criar obras mais autorais. Em 1981, Paulo e Rodrigo assumiram de forma integral a concepção das obras, dando início a um garimpo nas danças e manifestações populares do Brasil.
Novos espetáculos surgiram, mas sempre com músicas clássicas como trilha sonora. Depois de um interlúdio de 16 anos, aquela ideia de trazer compositores foi retomada com o convite a Marco Antônio Guimarães, líder do Uakti.
Violoncelista, ele era um músico erudito que tocava em orquestra ao mesmo tempo em que se valia da influência das tradições indígenas para criar suas composições.
Para Rodrigo, o encontro, que deu vida ao espetáculo 21, foi uma “sorte fenomenal”. Ele e Paulo estavam em busca do que poderia ser uma dança brasileira, misturando erudição com o popular. Quando o Uakti apareceu, esse caminho se iluminou. E seguiu sendo iluminado por um punhado de talentos brasileiros.
Nomes como José Miguel Wisnik, Tom Zé, João Bosco, Arnaldo Antunes, Caetano Veloso e Lenine foram desafiados a criar trilhas para o Corpo.
“No nosso processo criativo, queremos ser influenciados pelos compositores,” conta Paulo. A partir da trilha é que começa a se esboçar o que será o espetáculo, tanto em termos cênicos quanto coreográficos. “Se não nos abríssemos para isso, poderíamos soar repetitivos,” completa Rodrigo.
Paulo, com 74 anos, e Rodrigo, com 70, dizem que não pretendem se aposentar tão cedo, mas ao trazer Cassi como coreógrafa residente estão abrindo espaço para uma renovação que, quem sabe, permitirá ao Corpo seguir pulsando forte por muitos e muitos anos.
Quem se interessar em apoiar o trabalho da companhia pode ter mais detalhes sobre o Programa de Patronos do Grupo Corpo neste link.