Depois de anos cuidando da filha sem ajuda do ex-marido – que sequer pagava a pensão em dia – a médica Maria Paula desespera-se com o súbito capricho da adolescente: ela agora quer morar com o pai.

A disputa pela guarda de Luísa vai parar na Justiça, e a juíza reconhece que, apesar das faltas passadas, o pai ainda tem o direito de se reaproximar da filha.

Maria Paula considera-se injustiçada. Chora durante a audiência. A juíza compreende esse sentimento. Aos olhos da mãe aflita, a experiência e a autoridade de uma agente graduada do Judiciário não são nada diante de seu convívio com a filha. Para Maria Paula, a juíza era só “uma estranha que a via pela primeira vez”.

Essa juíza, personagem sem nome, narra a maior parte das crônicas coligidas em A Vida Não é Justa (Intrínseca, 224 páginas), da desembargadora Andréa Pachá. Ela carrega sempre a consciência de que é uma estranha para as pessoas que relatam seus dramas mais íntimos nas audiências judiciais. Mas é uma estranha a quem o Estado investiu de autoridade para decidir sobre questões delicadas como a guarda de filhos e a divisão patrimonial no divórcio.

O livro expõe assim a posição de poder e de precariedade ocupada pelos juízes das Varas de Família. A juíza que protagoniza o livro busca exercer o poder que o Estado lhe conferiu com isenção e sensibilidade. Mas sabe que suas decisões, por mais equilibradas que sejam, não consertam os ressentimentos de um casal que se separa.

Lançado originalmente em 2012, A vida não é justa teve algumas de suas histórias adaptadas para a televisão, na série Segredos de Justiça, exibida no Fantástico. O livro retornou recentemente às livrarias acrescido de textos inéditos, em uma edição que marca seu aniversário de dez anos.

Nas novas crônicas, Andréa Pachá se volta para o impacto que a pandemia teve sobre as relações familiares e, por consequência, sobre as Varas de Família. É o caso de Se eu pudesse esse amor todo dia, a crônica que abre o livro – a história bela e melancólica de duas mulheres idosas que construíram uma vida amorosa juntas mas cometeram o erro de não oficializar sua união.

O leitor deve resistir à tentação de identificar a juíza-narradora com a autora de A vida não é justa. É óbvio que Andréa Pachá recorreu à experiência de quase 20 anos à frente de Varas de Família para compor suas histórias. Mas ela mesma avisa que todos os personagens são ficcionais. Isso inclui tanto o pitoresco Zé Pernambuco, o bígamo cujo patrimônio é disputado por duas viúvas, quanto a sensata juíza que julga esse e outros casos difíceis.

A juíza, no entanto, tem um estatuto diferente dos demais personagens: é através dela que Andréa Pachá inclui suas próprias considerações sobre divórcio, relacionamentos, mudanças morais e comportamentais. Como é próprio da crônica, os casos narrados no livro – por mais interessantes que sejam por si mesmos – estão a serviço da reflexão.

O livro acompanha as mudanças pelas quais a legislação brasileira sobre família vem passando desde a redemocratização. Serve como um lembrete de que alguns direitos consolidados são bem recentes.

Em Mas eu amo aquele homem…,  a juíza-narradora conta um caso de violência doméstica com que lidou antes da Lei Maria da Penha. O leitor talvez tenha a impressão de que o texto nos remete à Idade das Trevas, mas a lei que protege as mulheres de homens covardes só foi sancionada em 2006.

Não há aqui, porém, ilusões sobre o alcance de novas leis. São instrumentos de mudança, mas não bastam para produzi-la. Mas eu amo aquele homem… não tem um final feliz, e é improvável que a Lei Maria da Penha houvesse mudado isso. Outras crônicas, como a devastadora O enterro do filho de Édipo, tratam do sentimento de impotência que assombra a juíza quando ela se depara com os dramas sociais brasileiros.


Andréa Pachá examina ainda as transformações sociais que acontecem fora dos limites das cortes, em uma velocidade que a lei não alcança. As famílias comportam novos modelos, como os casais homoafetivos e as configurações multiparentais, nas quais a criança convive com mais de uma figura paterna ou materna. As redes sociais modificam e multiplicam as possibilidades de relacionamento (e de conflito): Molhadinha25 narra a história de uma sexagenária que assume um personagem erótico em um fórum online, o que leva seu marido a exigir o divórcio.

As crônicas cobrem alguns casos que se podem considerar exóticos, mas no geral apresentam histórias que convidam à identificação imediata – se o leitor já não passou por situações similares, certamente conhece alguém que passou. A narrativa de Andréa Pachá é segura e envolvente. Nas suas reflexões, porém, a prosa às vezes roça no apelo kitsch, insistindo em imagens artificiosamente literárias (“os trajes de violência física machucavam o corpo e aniquilavam a alma,” lemos em um texto sobre mais um caso de violência doméstica).

Escorregões estilísticos à parte, A vida não é justa oferece uma perspectiva luminosa mas sóbria da justiça. Encontramos uma juíza que, diante de um casal divorciado que leva à Vara de Família sua disputa sobre a escola em que a filha deve estudar, julga o caso improcedente, pois não compete à Justiça decidir questões privadas.

O Judiciário existe para arbitrar certas disputas. Nem sempre pode – e nem sempre deve – resolvê-las.