Em Sísifo, monólogo de 2019, o ator, escritor e roteirista Gregorio Duvivier recorreu ao mito grego que carrega uma pedra morro acima para vê-la rolar e começar tudo de novo. Em sessenta cenas curtas, ele refazia incansavelmente o trajeto tomado por motivações que o levavam de volta ao ponto de partida. “Não se chega a um lugar sem passar por outros,” dizia o personagem antes de cada escalada.

É possível afirmar que Duvivier também passou por muitos lugares até atingir o ápice de seu prestígio e popularidade com O Céu da Língua, seu atual espetáculo. Uma unanimidade, a peça é um fenômeno já visto por 150 mil pessoas em 29 cidades brasileiras e portuguesas desde novembro passado, e ainda com uma extensa agenda pela frente.

Não é raro O Céu da Língua realizar até três sessões diárias para atender a demanda das bilheterias. 

Agora em novembro, Duvivier estará no Teatro Guaíra, em Curitiba, no dia 9, e em Fortaleza para oito exibições, esgotadas desde meados de outubro. Em janeiro tem Salvador e, nos dias 31/1 e 1º de fevereiro, ele enfrentará sua maior plateia: os 4 mil lugares do Espaço Unimed, o palco paulistano de grandes shows de cantores brasileiros e internacionais. Em maio, no Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo, Gregório reuniu 21.600 pagantes em 27 apresentações. Muita gente ficou de fora.

O Céu da Língua é um recital poético embalado de stand-up comedy – ou vice-versa – capaz de fazer rir com a mesma intensidade com que promove reflexões ou emociona o espectador.

Sob a direção de Luciana Paes, o artista divide a cena com o contrabaixista Pedro Aune e a designer e irmã Theodora Duvivier, responsável pela manipulação das projeções no cenário. “A repercussão vem das pessoas descobrirem a poesia que existe na vida cotidiana delas,” o comediante disse ao Brazil Journal.

No palco, Duvivier conta histórias inspiradas em suas duas filhas, Marieta, de 7 anos, e Celeste, de 3, cita os poetas portugueses Luís de Camões (1524-1580) e Fernando Pessoa (1888-1935), fala de peças de William Shakespeare (1564-1616) e chama atenção para o descaso com as metáforas empregadas no dia a dia que são manifestações poéticas.

Basta pensar em expressões como “batata da perna”, “céu da boca” e “pisando em ovos”, ou puxar da memória as letras de canções populares que muitos sabem de cor. Ele usa como exemplos Chão de Estrelas (1937), de Orestes Barbosa (1893-1966), e O Quereres (1984) e Livros (1997), ambas de Caetano Veloso, materiais para cenas impactantes do espetáculo.

“Os nossos compositores conseguiram realizar o sonho de Oswald de Andrade de levar poesia para as massas,” comenta o ator.

As reformas ortográficas que tiram letras de circulação e derrubam acentos capazes de alterar o sentido das palavras inspiram tiradas bem-humoradas. O mesmo acontece quando o artista comenta a ressurreição de palavras esquecidas, como “irado”, “sinistro” e “brutal”, que voltaram ressignificadas ao vocabulário dos garotos.   

Fala-se muito de que não há uma renovação entre os frequentadores dos teatros e que os culpados podem ser o streaming, a violência ou o preço dos ingressos. Mas o extraordinário sucesso de O Céu da Língua alerta para um ponto. A televisão, que antes alavancava as produções teatrais de grandes nomes, como Antonio Fagundes, Claudia Raia e Miguel Falabella, não tem o mesmo poder de duas décadas atrás. Agora, o público vem pela internet.

Duvivier despontou na rede com o coletivo Porta dos Fundos, que criou uma nova linguagem de humor no Brasil e cuja bem-sucedida produtora de conteúdo enche a rede com programas e podcasts. Não à toa, outro de seus sócios, Fábio Porchat, também arrasta multidões aos teatros e dialoga com a juventude em diversas plataformas.

“Esse grau de popularidade é legal porque as pessoas vão ao teatro ver coisas que não veriam de jeito nenhum,” reconhece Gregório. “Mas esta peça me transcende porque a vida está desprovida de poesia e acho que encontramos um momento offline para estabelecer uma troca.”  

O Céu da Língua é a ousadia de um artista disposto a se desafiar na mesma proporção em que provoca o público. A poesia é tradicionalmente conhecida como um inibidor de bilheterias e, quando funciona, inspira peças intimistas e segmentadas. Gregório apostou que seria diferente.

Neste caso, existe a confirmação de que para toda regra há uma exceção, e a explicação é fácil: o carisma e a inteligência do artista tornam acessíveis os assuntos menos palatáveis, e quem acompanha seu trabalho paga o ingresso porque confia em sua capacidade de comunicação.

Como repetia várias vezes em Sísifo, Duvivier pode ter a certeza de que não se chega a um lugar sem passar por outros. O artista que lota os teatros com O Céu da Língua é a soma do comediante do Porta dos Fundos, do apresentador do programa Greg News, exibido pela HBO até 2023, e de um sujeito observador que, graças a esta característica, atinge o espectador de seu tempo.