Uma nova máquina oferece a perspectiva de um futuro extremamente promissor, com enormes chances de curar moléstias e acabar com a pobreza – mas ao mesmo tempo envolvendo uma probabilidade não desconsiderável de implodir o planeta e varrer a humanidade do Universo.
Você apertaria o botão?
Estamos falando, obviamente, da inteligência artificial. Para além dos dilemas éticos, as ponderações de riscos e recompensas de quem está na dianteira do desenvolvimento dessa tecnologia não são muito diferentes das que motivaram os pesquisadores que conceberam a bomba atômica.
Por trás das decisões há o cálculo probabilístico de até que ponto vale a pena correr o risco de sofrer perdas significativas para obter um retorno esperado proporcionalmente muito maior.
É dessa maneira que funciona a cabeça dos grandes jogadores de pôquer, gestores de Wall Street e investidores do Vale do Silício, diz Nate Silver – o estatístico que virou celebridade com suas previsões eleitorais, em seu novo livro, No limite – A arte de arriscar tudo (Intrínseca; 560 páginas). (Compre aqui)
Em uma jornada um tanto prolixa mas cativante, Silver nos conduz numa viagem íntima pelo modelo mental das pessoas que estão liderando algumas das inovações mais marcantes da atualidade – gente como Peter Thiel, Marc Andreessen e Sam Altman, além do agora infame Sam Bankman-Fried.
“Silver descreve como os métodos de tomada de decisão do jogador profissional se espalharam para abranger uma ampla gama de atividades humanas, desde o investimento em criptomoedas até a busca por uma vida mais ética,” escreveu Tim Wu, o professor de Direito da Columbia University, em uma resenha para o New York Times.
Segundo Wu, o autor oferece um tour guiado por áreas em que as perspectivas de ganhos dependem de formas sofisticadas de assunção de riscos. “O resultado é um vislumbre da economia do futuro.”
Silver, que foi jogador de pôquer profissional e apostador contumaz antes de ganhar fama como analista eleitoral, divide as pessoas mais influentes em duas grandes tribos.
O livro se concentra na turma pertencente ao que ele chama de River – gente como executivos de venture capital, jogadores profissionais ou gestores de Wall Street, motivados por cálculos probabilísticos de valor esperado e custo de oportunidade. Eles tendem a ser contrarians – afinal, apostar contra o consenso propicia os maiores ganhos. No geral, são libertários: entusiastas irrestritos da livre iniciativa e da liberdade de expressão.
Duas correntes intelectuais fazem a cabeça de muita gente do River: o racionalismo e o altruísmo eficaz, que aborda decisões éticas e a filantropia com base em dados de modelos matemáticos. Como diz Silver, as pessoas dessa turma dispõem de “apetite universal para se envolver em todo tipo de polêmica.”
Na outra tribo estão os representantes do Village: em sua maioria, políticos tradicionais, alta burocracia, jornalistas e acadêmicos. São pessoas de centro-esquerda, mais sentimentais e céticas ante o racionalismo da turma do River.
“Ao contrário do Projeto Manhattan, a investida nas fronteiras da inteligência artificial não é comandada pelo governo e está sendo encabeçada pelos ‘tecno-otimistas’ do Vale do Silício com sua atitude ‘riveriana’ em relação aos riscos e recompensas,” escreve Silver.
Silver argumenta que a distância entre as duas tribos tem se ampliado. De um lado, a grande imprensa e a academia manifestam uma visão cada vez mais crítica em relação aos rumos do Vale do Silício; de outro, empresários reagem contra o que consideram o ‘progressismo excessivo’ dos professores e estudantes universitários.
De acordo com o autor, em 2023 a guerra fria entre as duas tribos ganhou contornos de conflito aberto, “quando bilionários de hedge funds encabeçaram o ataque para expulsar presidentes da Ivy League.”
No trecho a seguir, Silver contrapõe as críticas que os ‘riverianos’ fazem dos ‘villagianos’ e vice-versa – e ajuda a entender o debate mais marcante dos tempos atuais.
Crítica do River ao Village
Uma reclamação frequente entre as pessoas do River é a de que os moradores do Village “politizam demais.”
O que isso significa exatamente? Que os villagianos estão acoplando quando deveriam estar desacoplando. O River se preocupa que o protagonismo do Village nos campos acadêmico, científico e jornalístico está se tornando cada vez mais difícil de separar do partidarismo político democrata.
De fato, os riverianos sofrem de uma desconfiança inerente de partidos políticos, sobretudo em um sistema bipartidário como o dos Estados Unidos, onde partidos formam coalizões abrangentes demais e sem uma linha ideológica definida mesmo tratando de dezenas de questões não muito relacionadas entre si. Os riverianos acreditam que a tomada de posição partidária tende a servir como um atalho para a análise mais sutil e rigorosa da qual os intelectuais públicos deveriam se ocupar. A seu ver, esses problemas ficaram muito evidentes durante a pandemia de covid-19, e o Village adotou posições escancaradamente partidárias […]
Os riverianos também creem que os villagianos são muito conformistas e não têm noção de quanto suas opiniões são influenciadas pelo viés de confirmação e por modismos políticos e sociais no âmbito de suas comunidades. No Village, ter um diploma universitário é quase um pré-requisito para os cargos mais prestigiados no mundo acadêmico, no governo e nos meios de comunicação. Todavia, conforme os eleitores se separam e se distribuem por linhas políticas e a polarização educacional aumenta, as comunidades do Village se tornam cada vez mais homogêneas em termos políticos. Em 2020, os 25 condados com os índices mais altos de educação formal dos Estados Unidos votaram em Joe Biden em vez de Trump, por uma diferença média de 44 pontos – muito maior que a margem de 17 pontos manifestada quando votaram em Al Gore em vez de George W. Bush em 2000. Em outras palavras, trata-se de uma mudança recente, e as instituições do Village, como as universidades e a imprensa – que tinham uma tradição histórica de não partidarismo – estão lutando para se adaptar a ela.
Além disso, lembra que mencionei o quão competitivos os riverianos são? Bom, outra preocupação que eles têm é de que os villagianos estejam sufocando a competição ao se concentrar cada vez mais na equidade de resultados em vez de na igualdade de oportunidades. Em geral, os riverianos defendem a crença capitalista clássica de que o livre mercado é muito superior a um planejamento central porque separa o joio do trigo – os vencedores e os perdedores.
Também acreditam que a competição de mercado beneficia a sociedade como um todo ao fomentar inovação tecnológica, crescimento econômico e melhorias no padrão de vida. E podem citar exemplos de como o Village se afasta da meritocracia: faculdades e programas de pós-graduação de elite começaram a desvalorizar as pontuações de testes padronizados, embora a maior parte das pesquisas sugira que avaliações do gênero são menos influenciadas pelo contexto social que outras maneiras de avaliar os candidatos.
Naturalmente, também acham que os villagianos são paternalistas demais, neuróticos demais e avessos demais aos riscos – a exemplo das vastas precauções contra a covid-19 impostas a estudantes de faculdades, ensino médio e ensino fundamental. Os riverianos as viram como uma falha em termos de custo-benefício, levando-se em conta que os jovens eram muito menos propensos que a população em geral de sofrer de decorrências graves da covid-19, e o fato de que as interrupções no sistema educacional causaram enormes perdas na aprendizagem.
Por fim, os riverianos são ferrenhos defensores da liberdade de expressão, não apenas como um direito constitucional, mas como uma norma cultural. Tenha em mente que os riverianos são grandes abstracionistas e se importam muito com os princípios. E acreditam também que melhores ideias vencerão no “mercado de ideias” e que as tentativas do Village de regulação e regulamentação da liberdade de expressão são hipócritas e muitas vezes contraproducentes.
Os riverianos não são necessariamente “anti-woke” (bem, alguns são, como Elon Musk), mas inúmeros deles se identificam em termos políticos como progressistas – mesmo enxergando as guerras culturais como uma irritante distração das coisas com as quais de fato se importam.
Crítica do Village ao River
Por sua vez, o Village também pode fazer várias críticas veementes ao River. Uma vertente do debate gira em torno do ceticismo quanto ao capitalismo desregulado e o senso de arrogância e individualismo do River. Os riverianos podem até dizer que gostam de competição, mas o Village, não sem razão, acha que é porque as competições são frequentemente manipuladas a favor do River. A verdade é que os riverianos são quem está no poder, não os “disruptores” que às vezes alegam ser, e se beneficiam das hierarquias sociais existentes — não precisa ser superwoke para perceber que a maioria dos habitantes do River é muito branca, muito masculina e muito abastada.
Além disso, os villagianos encaram com ceticismo a noção dos riverianos de que são mesmo tão afeitos aos riscos quanto afirmam ser. É evidente que talvez jogadores de pôquer ou donos de pequenas empresas realmente estejam arriscando a própria pele. Mas, quando se trata de grandes negócios como os de capital de risco, fundadores e investidores podem fracassar repetidas vezes e ainda assim não saírem prejudicados. Um exemplo: Adam Neumann, o cofundador da WeWork, passou a ser considerado um péssimo gestor após a empresa perder cerca de 90% de seu valor de mercado, e mesmo assim recebeu centenas de milhões em financiamento de capital de risco para sua nova empresa, Flow.
O Village também se preocupa com os riscos morais em uma variedade de questões – desde deixar de tomar precauções contra a covid-19 até fazer investimentos extremamente alavancados –, e questionam se as pessoas que assumem riscos arcam com as consequências de suas ações. Na crise econômica global de 2007-2008, por exemplo, a excessiva exposição a riscos no setor financeiro resultou em danos colaterais à economia, enquanto os executivos que participavam dos arriscados empreendimentos saíram relativamente ilesos.
Também há um questionamento sobre se as recentes inovações tecnológicas beneficiaram de fato a sociedade – Vale do Silício pode até se gabar de enviar foguetes a Marte e desenvolver tecnologias médicas que salvam vidas, mas uma de suas maiores categorias de investimento são as redes sociais, que têm sido responsabilizadas por todo tipo de mazela, desde o ressurgimento de governos nacionalistas até a depressão entre adolescentes. No meio tempo, a expectativa de vida nos Estados Unidos estagnou.
Além disso, o Village acredita que os riverianos são ingênuos em relação ao funcionamento da política e que está acontecendo nos Estados Unidos. Mais especificamente, consideram que Donald Trump e o Partido Republicano reúnem características de um movimento fascista e argumentam que é hora de retidão moral e unidade contra forças do tipo.
Os villagianos acreditam que têm razão acerca das questões mais importantes da atualidade, desde mudanças climáticas até direitos de pessoas gays e trans. Assim, para eles, a propensão riveriana a apontar furos em argumentos e “apenas fazer perguntas” é uma perda de tempo, na melhor das hipóteses, e reflete uma postura que pode vir a fortalecer uma enxurrada de gente de má-fé, enganadores e intolerantes.
Em geral, os villagianos não compartilham do interesse do River pela filosofia moral abstrata. Eles entendem que algumas questões podem ser resolvidas pelo senso comum, que a política é inerentemente transacional e que nem tudo precisa ser colocado em debate ou submetido a uma análise de custo-benefício. Também duvidam de que os riverianos sejam de fato tão independentes e abertos a críticas quanto afirmam ser. De SBF [Sam Bankman-Fried] a Elon Musk e “aceleracionistas” da AI, o River desenvolveu um punhado de cultos de personalidade.
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