Na última década, o presidencialismo de coalizão no Brasil passou por mudanças drásticas.
Antes vivíamos sob um hiperpresidencialismo imperial. Com o controle do Orçamento, partidos mais coesos, regimentos internos da Câmara e do Senado que favoreciam o Executivo, emendas parlamentares sendo executadas na base da lealdade, e um DNA historicamente governista, a caneta do Presidente da República era uma Montblanc.
Hoje ainda há tinta, mas a marca da caneta certamente é de qualidade muito inferior.
Este não é um artigo de mérito, mas de realidade.
A realidade é que o Congresso Nacional, especialmente nos últimos dez anos, criou leis e alterou seus regimentos para aumentar seu protagonismo e força. Deu certo. Hoje vivemos em um país onde o Congresso é protagonista das principais decisões, seja proativamente ou modulando as agendas do Poder Executivo.
De onde vieram essas mudanças? O que aconteceu? Muitos empresários, gestores e cidadãos estão surpresos com essa força do Parlamento, mas ela não surgiu da noite para o dia, de forma abstrata. Foi uma construção gradual e contínua, em muitos capítulos. Vamos aos principais:
1. No longínquo ano de 2001, a Emenda Constitucional 32/2001 foi promulgada, a partir de uma proposta do senador Esperidião Amin. Até então, o Presidente da República tinha o poder de reeditar indefinidamente medidas provisórias (MPs), mantendo-as válidas sem que houvesse uma manifestação do Congresso Nacional. A PEC de Amin muda isso.
2. Já em 2009, o então presidente da Câmara, Michel Temer (MDB), anuncia uma releitura da tramitação de medidas provisórias. Antes da decisão de Temer, posteriormente referendada pelo STF, as MPs editadas pelo Presidente trancavam integralmente a pauta após 45 dias de sua publicação. A mudança permitiu que PECs, projetos de lei complementar, resoluções e decretos legislativos pudessem ser votados mesmo com a pauta trancada, retirando parte do poder do Executivo sobre a agenda do Legislativo.
3. A Resolução 1/2013, do Congresso Nacional, pouco repercutida na época, forçou o Congresso a analisar vetos presidenciais, antes absolutamente ignorados. Com o passar do tempo, a resolução perdeu seu efeito devido a outras mudanças, mas manteve um impacto comportamental significativo: hoje o Congresso analisa, e rotineiramente derruba, vetos presidenciais.
4. A Emenda Constitucional 76/2013, conhecida na época como a PEC do Voto Aberto, determinou o fim do voto secreto em votações de perda de mandato de parlamentares e apreciação de vetos do governo. Essa mudança, juntamente com as emendas individuais obrigatórias que menciono no próximo item, alterou o comportamento dos parlamentares em votações de veto, normalmente de alta relevância. Primeiro, aumentou a independência do parlamentar, agora mais preocupado em agradar o setor ou grupo que o apoia do que o Executivo. Com a chegada das emendas individuais obrigatórias, essa independência se tornou ainda mais confortável.
5. As Emendas Constitucionais 86/2015 e 100/2019 tornaram obrigatória a execução das emendas orçamentárias individuais e das emendas das bancadas estaduais. A Emenda Constitucional 105/2019 autorizou que metade das emendas individuais fosse destinada diretamente ao beneficiário final, eliminando a necessidade de convênios ou outras formas de intermediação. É a famosa “Emenda Pix.”
Foram as mudanças mais revolucionárias na configuração de poder do presidencialismo de coalizão, que hoje não mais existe como no passado. Antes da EC 86/2015, o governo determinava a execução das emendas a partir da lealdade dos parlamentares, gerando uma enorme dependência governista.
Lembro-me bem de ir ao Palácio do Planalto durante as discussões do Orçamento da União antes da EC 86/2015. A sede do Executivo parecia um estádio de futebol em final de campeonato, lotada de parlamentares querendo demonstrar sua lealdade ao governo e garantir a execução de suas emendas.
6. Em 2020, foi criada a RP9, popularmente conhecida como emenda de relator ou “orçamento secreto,” dando ao relator do Orçamento no Congresso um enorme poder de alocar recursos bilionários, distribuindo-os entre seus pares.
Em 2022 o STF declarou esta prática inconstitucional. No entanto, durante os três anos em que esteve em vigor, a RP9 foi responsável pela maior parte dos recursos públicos direcionados por deputados e senadores. Mesmo considerada inconstitucional, os recursos da RP9 continuam, em sua maioria, sob o controle do Congresso, agora sob gestão das comissões parlamentares.
7. O Sistema de Deliberação Remota (SDR) da Câmara dos Deputados, introduzido durante a pandemia de 2020, também teve impactos na dinâmica de aprovação das leis. Líderes partidários gostaram do poder de levar matérias diretamente ao Plenário mediante acordo, o que acelerou a tramitação de matérias consideradas prioritárias pelo alto comando da Câmara. Neste modelo, as comissões temáticas perderam parte de sua importância e, hoje, acordos firmados entre as lideranças acabam levando projetos diretamente à votação. Requerimentos de urgência, necessários neste modelo, tornaram-se rotina.
8. Em 2021 ocorreu a desidratação do “kit obstrução” – uma série de manobras regimentais para retardar a votação de um projeto. Na época, a imprensa viu a mudança como uma derrota da oposição, mas de fato foi uma vitória do alto comando da Câmara. Sim, o “kit obstrução” é muito usado pela oposição, mas com o crescente protagonismo do Congresso ele também é útil ao governo quando este enfrenta votações desconfortáveis. A mudança fortaleceu a elite política da Câmara. Uma das principais alterações garantiu que projetos em urgência “urgentíssima” não podem ter requerimentos de retirada de pauta apresentados.
9. Medidas Provisórias sempre foram um instrumento de força do Presidente da República. Diante de uma necessidade ou vontade – seja de crédito, política pública ou mudanças tributárias – lá estava a possibilidade de uma MP, que vale como lei assim que é editada. Em 2022, último ano da gestão Bolsonaro, 40% das medidas provisórias sequer foram votadas. Até o presente momento, Lula editou 100 medidas provisórias, e apenas 13 se converteram em leis.
O Congresso não gosta de MPs e não hesita em mostrar sua insatisfação, inclusive devolvendo-as, algo impensável décadas atrás. A Câmara prefere não instalar comissões mistas para analisá-las, forçando o Executivo a recuar em MPs e a editar projetos de lei, onde o timing da aprovação é todo do Congresso.
10. Cinco novas comissões permanentes foram criadas em 2023: Amazônia e Povos Originários e Tradicionais, Saúde, Trabalho, Desenvolvimento Econômico e Comunicação. As novas comissões tiveram dois efeitos. Primeiro, aumentaram o poder do alto comando da Casa de indicar aliados para posições de relevância. Segundo, prolongaram o processo legislativo, o que, por consequência, fortalece a tese de levar matérias diretamente ao plenário, mediante acordo.
A recente suspensão do pagamento das emendas orçamentárias impositivas pelo ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), confirmada pela Corte, azedou ainda mais a relação do Legislativo com o governo. O ministro alega falta de transparência na execução das dotações. Os congressistas atribuem influência do Executivo na decisão de Dino, que sempre foi aliado do presidente Lula e, até poucos meses, ministro de Estado.
Foi visto como uma tentativa de war by proxy, ou guerra por procuração, do Governo para reduzir um pouco o imenso protagonismo do Congresso.
No entanto, poucos dias depois, na tarde desta terça feira, uma reunião entre os Poderes produziu um consenso. O novo desenho propõe mais transparência e accountability, o que é uma ótima notícia. No acordo, a boa notícia para o Governo é a prioridade das “Emendas Pix” para obras inacabadas, ainda que os parlamentares possam direcionar ao seu reduto de preferência.
Mas, na prática, tudo ficou muito parecido com o que era antes. A destinação agora é mais responsável, mas o volume de recursos na mão do Congresso continua igual. Emendas individuais, a parte mais importante aos parlamentares, estão mantidas.
Mais uma prova de que o Congresso, quando ameaçado, quase sempre consegue o que quer.
Lucas de Aragão é sócio da Arko Advice.