A história é clássica entre economistas do mundo anglo-saxão, e passa-se na India colonial do século 19. Um poderoso inglês, senhor de engenho, percebeu que havia em seu vilarejo muitas cobras venenosas, e que essas eram perigosas demais, já que camponês morto não trabalha.
 
Resolveu então combater o problema com um método que julgou ainda por cima generoso: para cada cobra morta que um indiano lhe trouxesse, ele pagaria uma moeda.

O esquema funcionou bem no início. Até escalar.
 
Logo, muitas pessoas começaram a criar cobras em cativeiro, apenas para matá-las e vendê-las ao inglês. A população de cobras disparou exponencialmente. Percebido o fiasco, o programa foi cancelado. Criadores de cobra então jogaram fora seus estoques nos bosques e campos. O inglês havia gasto uma fortuna, e como resultado apenas aumentou o problema.

A fábula é longe de surpreendente. São infinitos os exemplos de leis, normas e políticas públicas que notoriamente colhem o exato oposto do intencionado, mas perduram porque sua militância acredita que ideias e intenções nobres dizem tudo para uma tomada de decisão, não importando o quão contraproducente ou desavisadas sejam.

Incentivos são um princípio da natureza, e não da cartilha de ninguém. Economistas supostamente entendem de incentivos, e a fábula inglesa os ilustra bem. Pensemos que tipo de incentivos sociais nossa constituição e seus mecanismos estruturais de transferência de renda nos dão. Não há nada mais justo e nobre que tributos de regiões mais ricas custeiem o desenvolvimento das regiões mais pobres do país. Mas isso acontece?

O Brasil tem mais de cinco mil municípios, sendo nada menos que 90% deles custeados (mais de 80% de suas receitas) por repasses federais. Em nome da criação de autonomia regional e da exclusividade do conhecimento sobre os problemas de regiões específicas, o contribuinte das grandes cidades patrocina há décadas salários e custeios de literalmente milhares de prefeituras Brasil afora. Mas e os problemas sociais dessas regiões, após tanto tempo e dinheiro investido assim, diminuíram ou aumentaram com isso?

Para responder essa pergunta, pense agora nos estados brasileiros. Um cidadão de Alagoas, estado minúsculo, tem à sua disposição (per capita) muito mais poder público que um cidadão baiano. Pense em qualquer serviço do estado, segurança por exemplo. A secretaria de segurança pública da Bahia é responsável pela segurança de muito mais gente que seu par alagoano. O cidadão alagoano é em tese privilegiado: sobre ele incide mais Estado que o baiano, e para ele direciona-se muito mais dinheiro público oriundo do Sudeste. Supõe-se então que os indicadores de segurança pública sejam bem melhores em Alagoas que na Bahia, e que o IDH médio alagoano seja bem mais alto que o baiano.

Infelizmente, não é o que mostra o resultado das PNADs. Enquanto milhares de grupos e clãs políticos como a família Calheiros em Alagoas alimentam-se desse sistema — tal como os criadores de cobra aproveitavam-se da boa intenção do senhor inglês — os resultados não são o defendido por aguerridos militantes das cartilhas desenvolvimentistas. Não raramente a incidência de mais Estado piorou a qualidade de vida em áreas pobres, como o próprio leitor pode constatar nas tabelas do Atlas Brasil.

É preciso um exercício intelectual honesto, baseado na observação de causas e consequências a partir de dados históricos, em vez de nos pautarmos por máximas e frases de efeito que não ajudam ninguém. 
 
“Estado não é empresa” (como se até as instituições de caridade não fossem obrigadas a fazer contas para funcionarem), “dívida é vida” (como se andar com as próprias pernas fosse morte), ou “atenção aos mais carentes” (como se denunciar que são roubados por discursos vazios não fosse exatamente isso) são apenas alguns exemplos de mantras corriqueiros de quem defende projetos cujos resultados são o extremo oposto da intenção original.

Por mais bem intencionado que seja, o brasileiro ‘de esquerda’ está há décadas criando cobras, e aumentando o tamanho da desigualdade que diz combater. 

 
Bruno Pesca é economista, surfista e colaborador do Brazil Journal.  Escreve o blog Posto12, do qual este texto foi adaptado.
 
Na ilustração acima, ‘The Snake Charmer’, Jean-Léon Gérôme, circa 1880.