O que vence a guerra? A arma ou a ideia? A força bruta ou a força invisível dos conceitos?

Evidentemente, as batalhas são, em regra, ganhas pelos canhões e baionetas, assim como o golpe institucional costuma vingar pela violência física. Contudo, como mostra a história, esses triunfos são efêmeros. Hannah Arendt já havia diagnosticado: “Embora a violência seja capaz de destruir o poder, jamais poderá substituí-lo.”

As verdadeiras vitórias alimentam-se de conceitos, que se impregnam na consciência da coletividade. Esses ideais, apoiados em valores, ganham adeptos, devotos fiéis. Tornam-se grandes vetores, bandeiras, direcionando os caminhos. Quando alguém acredita que defende algo maior, sua conduta ganha um fim. Nenhuma bala se mostra capaz de derrotar essas crenças.

O Cristianismo propunha um conceito simples: o amor universal. Antes dele, eram uns contra outros. Eles e nós. O Cristianismo promoveu uma pequena revolução, ao professar o amor até mesmo aos inimigos, aos diferentes. Num primeiro momento, os cristãos foram proscritos, torturados, apedrejados e crucificados. Porém, a ideia se revelou resiliente. Foi o bastante. O Cristianismo prevaleceu.

Políticos logo compreenderam a importância de conquistar corações e mentes. O poder político ganha força e tração se alinhado com uma ideia. Getúlio Vargas recebeu a denominação de “o pai dos pobres”. Essa fama certamente contribuiu para que ele se tornasse o presidente brasileiro que por mais tempo ocupou o cargo.

Em Júlio César, a peça essencialmente política de Shakespeare – e que por isso mesmo recebeu uma tradução para o português de Carlos Lacerda –, alguns políticos romanos desejam eliminar o general que dá nome à obra.

César é adorado pelo povo, o que desagrada a muitos dos senadores. Na verdade, trata-se de uma briga pelo poder. Porém, os conspiradores buscam dar um verniz ao movimento: defendem que César representa uma ameaça à liberdade, pois ambiciona se tornar o ditador de Roma.

Com esse argumento, conseguem atrair Brutus, filho adotivo de Júlio César, para seu lado. No senado, assassinam César e assumem o poder. Em seguida, Brutus explica ao atordoado povo – que idolatrava César e não compreende o acontecido – os motivos pelos quais César deveria morrer.

Brutus começa por esclarecer que amava César, e todos sabiam disso. Contudo, Brutus ressalva que amava mais ainda a liberdade de Roma e de seus habitantes. Feita a ponderação, optou pelo valor maior e, assim, matou aquele que pretendia usurpar a liberdade.

Shakespeare não explicita se a narrativa dos conspiradores tinha base real. Não se sabe se Júlio César de fato seria um ditador. Isso não é importante. O que fez diferença do ponto de vista político foi o poder da história contada pelos conspiradores, que se mostrou adequada e suficiente para, naquele momento, atingir seu propósito. A liberdade serviu – dentro da narrativa construída – como valor digno de defesa.

Na trama shakespeariana, contudo, fica claro que não adianta matar Júlio César se o que ele significa permanece vivo. O fantasma do general persegue os conspiradores. A ideia mais forte, ao fim, prevalece. A narrativa política pode ter falhas, mas isso não quer dizer que ela possa vencer, ainda que momentaneamente.

O vencedor do prêmio Pulitzer Thomas E. Ricks lançou Churchill & Orwell – A luta pela liberdade (Zahar, 352 páginas), no qual, além de traçar a biografia desses dois protagonistas do século XX, registra a contribuição deles para a causa da liberdade. A versão em português, lançada há três anos, vem com o privilégio da tradução do brilhante Rodrigo Lacerda.

Churchill e Orwell viveram um momento crucial da história da civilização. A Segunda Guerra Mundial, acrescida da divergência estrutural entre os modelos do capitalismo e do comunismo, foi muito mais do que um conflito bélico. Eram ideias e valores que se enfrentaram. As narrativas, de lado a lado, escondiam, distorciam e enfeitavam os fatos.

George Orwell – nome artístico de Eric Arthur Blair – entusiasmou-se ainda na juventude pelas ideias socialistas. Em 1936, alista-se como voluntário na Guerra Civil Espanhola, para combater os franquistas. Toma uma bala de raspão. Retorna para a sua Inglaterra. Queria ser escritor. Embora tenha tentado ingressar na força inglesa na Segunda Guerra, foi recusado pelo exército britânico. Percebeu que lutaria com outra arma: a letra.

Sensível ao momento, Orwell identificou com nitidez a batalha ideológica e o abuso das narrativas. No seu ensaio A política e a língua inglesa, Orwell alfineta: “Aldeias indefesas são bombardeadas por aviões, os habitantes são expulsos para o campo, o gado é metralhado, as casas incendiadas por bombas incendiárias: a isso chamam pacificação. Milhões de camponeses têm suas fazendas roubadas e são jogados nas estradas apenas com o que podem carregar: a isso chamam transferência de população ou retificação de fronteiras. Pessoas são aprisionadas por anos sem julgamento, fuziladas pelas costas ou enviadas para a morte em campos gelados de trabalho forçado: a isso chamam de eliminação de elementos não confiáveis.”

Orwell publicou pelo menos duas obras icônicas, das mais influentes da literatura. A primeira, em 1945, foi A Revolução dos Bichos. O livro conta a história de uma fazenda na qual os animais, insatisfeitos com o tratamento recebido pelos humanos, resolvem rebelar-se, liderados pelos porcos. Os animais conseguem expulsar os homens.

Inicialmente, os líderes revolucionários pregam ideais de igualdade e liberdade, as quais deveriam reger a vida dos animais. Entretanto, com o tempo, os porcos passam a defender que “alguns são mais iguais que outros”.

Nessa fábula moderna, mesmo entre os suínos e outros bichos, há traições. Aos poucos, os porcos, líderes do movimento revolucionário, passam a agir exatamente como os humanos, tratando os demais animais de forma despótica e contrariando exatamente aquilo que, antes, juraram defender.

Em A Revolução dos Bichos fica claro que a democracia não é uma conquista definitiva, mas uma contenda constante, renovada a cada manhã. O livro funciona como clara crítica ao stalinismo.

A obra-prima de Orwell viria em 1949, com 1984. Quando escreve o livro, ele tinha ciência de sua condição de paciente terminal. A tuberculose o levaria no começo de 1950. 1984 foi seu testamento: o último suspiro de um homem desenganado.

1984 fala de um mundo no qual o Estado, por meio do “Grande Irmão” – “Big Brother” no original – espreitava, por uma tela, os atos de todas as pessoas. Sequer era possível esquecer dessa circunstância invasiva, pois, em toda parte, cartazes e telas registravam: “Big Brother is watching you”. Nesse tenebroso mundo futuro, não havia espaço para a privacidade.

O Estado, por meio do seu Ministério da Verdade, impunha uma realidade que lhe parecia adequada, com o declarado propósito de manutenção do poder. Havia a institucionalização das “fake news” e da censura. Proíbe-se o sexo e até mesmo o passado é recontado. Manipulava-se a língua. Impõe-se uma nova forma de falar – a “novilíngua” –, noutro meio de garantir o domínio sobre as pessoas. Pensamentos reacionários, desde os mais inocentes, são proibidos pelo Ministério do Pensamento – e quem se alijar do sistema, ou mesmo questioná-lo, torna-se proscrito, uma “não pessoa” (“unperson”, no original).

O Ministério do Amor, por sua vez, funciona como local de tortura. Afinal, nesse mundo desumano, condena-se o amor. Os amantes sofrem severa repressão e são “reeducados”.

Aguçando o espírito crítico, livros como A revolução dos bichos e 1984 ajudaram a formar o conceito de liberdade.
Naquele mesmo momento histórico na Inglaterra viveu Winston Churchill. Não é tarefa simples separar o homem de seu significado. Afinal, Churchill liderou as forças aliadas contra a Alemanha nazista, sendo a face e a voz da resistência nos momentos mais sombrios da Segunda Guerra. Pode-se dizer que, sem ele, talvez o resultado do conflito mundial fosse outro.

Sofisticadíssimo, nobre, elitista, inveterado bebedor de uísque (Churchill teria dito que tirou muito mais da bebida do que esta tirou dele), frasista, orador e escritor brilhante – ganhou o Nobel de literatura em 1953. Acima de tudo, um ser humano formidável. Como relata Ricks, possivelmente nenhum outro líder mundial chorou tantas vezes em público quanto Churchill no período em que foi primeiro-ministro inglês, quebrando a ideia de que haveria uma frieza dos britânicos.

Num momento histórico tenebroso, Churchill compreendeu a importância das ideias para ganhar a causa. Seus discursos tiveram mais força que seus canhões. Ele foi a voz da liberdade, quando a luta não era apenas metafórica ou uma mera narrativa.

Hannah Arendt, com sua notável lucidez, concluiu: “Não resta nenhuma outra causa a não ser a mais antiga de todas, a única, de fato, que desde o início da nossa História determinou a própria existência da política: a causa da liberdade em oposição à tirania.”

Churchill e Orwell combateram essa luta. Mais ainda, como o livro deixa claro, esses dois homens, pelas suas obras, personificaram esta causa, tornaram-se símbolos dessa luta constante – tão acesa no Brasil de hoje.

José Roberto de Castro Neves é sócio do Ferro, Castro Neves, Daltro & Gomide Advogados (FCDG).