Às 17:06 do dia 27 de julho de 2020, eu me tornei uma estatística.

Ou melhor, duas.

Na semana anterior eu havia feito meus exames anuais de rotina. Eu me alimento corretamente, faço exercícios 5 vezes por semana, não fumo, bebo socialmente. Nunca tomei antidepressivos, durmo bem, não sinto qualquer tipo de dor. Às vésperas de completar 50 anos de idade, minha saúde parecia inabalável. Por isso, eu nunca ficava apreensiva à espera do resultado dos exames. Mas desta vez era diferente.

A mamografia que eu fizera dias antes dera um resultado que fugia ao padrão. Meu médico então recomendara que eu fizesse um outro exame. Fui ao laboratório sem saber exatamente o que encontrar, mas quando vi como era o procedimento, tive um mau pressentimento. A médica estava acompanhada de duas assistentes. Explicou que me daria uma anestesia para remover uma parte do material – que seria enviado para uma biópsia. Não sei se foi o tamanho da sala, da equipe, os equipamentos, a descrição do exame ou o pacote todo, mas em poucos segundos senti a primeira lágrima escorrendo pelo meu rosto. Uma das enfermeiras percebeu a situação, segurou a minha mão e perguntou se estava tudo bem. Em voz baixa e trêmula eu disse uma frase que jamais ouvira sair da minha boca: “Estou com medo”.

Durante todo o tempo que durou o exame, uma eternidade que pode ter levado 15 minutos ou 1 hora, eu jamais conseguiria precisar, eu chorei baixinho. A mulher pragmática, decidida, segura, ambiciosa deu lugar a uma menina assustada e confusa, que pensava que aquilo tudo não parecia nada bom. 

Dias depois, naquela tarde de segunda-feira no final de julho, um telefonema comprovou que o medo não era infundado, que o pressentimento não tinha sido paranoia da hipocondríaca que jamais fui. Do outro lado da linha, meu médico me dizia que os resultados haviam chegado e, infelizmente, haviam detectado um câncer. 

Não há preparação possível para uma notícia dessas. Não importa quantos livros você tenha lido, quantos filmes tenha assistido, quantas pessoas conheça que já tenham enfrentado a doença. Ao ouvir aquelas seis letras, senti primeiro uma descarga elétrica percorrendo meu corpo de cima a baixo. Em seguida, uma espécie de calafrio. E, numa fração de segundos, era como se meus membros tivessem se soltado do tronco. A cabeça pesava. Eu não sabia o que falar ou fazer.

O médico tentou me tranquilizar dizendo que estava em estágio muito inicial e não era invasivo, com chance de cura de 98%, e me perguntou se eu poderia ir pessoalmente ao consultório para conversarmos com calma. Não sei explicar como consegui dirigir até lá. A única coisa de que me recordo é que no trajeto pensei que eu havia virado estatística. No Brasil, estima-se que em 2020 cerca de 66 mil mulheres irão receber o diagnóstico de câncer de mama. Eu me tornara uma delas. O ano da covid-19 acabara de se transformar também, para mim, no ano do câncer – e eu não fazia a menor ideia de como ia lidar com essas duas ameaças ao mesmo tempo.

Também recordei que eu havia planejado fazer meus exames três meses antes, em abril, mas cancelara justamente por causa dos perigos da pandemia. Se eu não tinha nenhum problema de saúde, por que me expor ao risco de ir a um laboratório? Adiei os exames, certa de que aquela era a decisão mais segura. Algum tempo depois li nos jornais que milhares de pessoas fizeram o mesmo que eu e fugiram de hospitais, pronto-atendimentos e laboratórios. Por conta disso, calculava-se que cerca de 50 mil pessoas deixaram de ser diagnosticadas com diversos tipos de câncer naquele período. Não porque magicamente a doença desaparecera, mas porque não houve meios para identificá-la. Para minha surpresa eu agora me tornava essa segunda estatística. Como eu poderia imaginar ao ler as reportagens que uma daquelas dezenas de milhares de pessoas seria eu?

Em choque e sem qualquer familiaridade com a terminologia que cerca a doença, encarei a consulta sem entender quase nada do que o médico dizia. Inconscientemente, naquele consultório comecei a encarar a situação de um modo, digamos, jornalístico. Abri o bloco de notas que sempre carrego comigo e comecei a anotar tudo o que ele falava. 

Ao sair de lá, ainda atordoada, comecei minha “apuração”. Telefonei para pessoas que já tiveram câncer ou conviveram com pacientes e pedi indicação de oncologistas e médicos que se tornariam minhas “fontes”. Era neles que eu confiaria para obter informações – não no Google. 

Decidi também que era preciso usar a palavra certa para definir o que eu tinha. Não “aquela doença”. Não “big C”. Câncer. Passei toda minha vida adulta trabalhando com palavras. Não seria agora que eu começaria a fugir de uma delas. Finalmente, ainda que eu tenha lidado com vários momentos de preocupação e medo desde que recebi o diagnóstico, tentei manter o pensamento positivo e o bom-humor. Me cerquei de pessoas otimistas e generosas, que me paparicaram e conseguiram deixar as últimas semanas muito mais leves do que inicialmente eu suspeitava que seriam. Em nenhuma ocasião pensei “por que eu?” – até porque a resposta seria simples demais. Foi comigo porque estou na pista. E enquanto estiver na pista, vivendo, haverá danças frenéticas e tombos homéricos. O importante é dançar mais do que cair.

Passados quase dois meses daquele telefonema, já me submeti a uma cirurgia e iniciei a radioterapia. Meus médicos dizem que o resultado está sendo o melhor possível e que após o tratamento estarei zerada. Olhando para trás, preciso admitir que tive sorte. Por diagnosticar a doença muito cedo, por ter recursos para tratá-la da melhor forma possível, por trabalhar com pessoas que entendem que antes de ser uma profissional sou um ser humano – e que nem sempre terei condições de trabalhar entregando 100% da minha capacidade.

Por que decidi tornar essa experiência pública? Duas razões: a primeira é que estamos às vésperas do Outubro Rosa, campanha que tem como objetivo conscientizar as mulheres sobre o controle do câncer de mama.  Como meu caso mostra, o diagnóstico precoce é uma das grandes forças para combater a doença. Portanto, se meu exemplo servir de estímulo para que alguma mulher se cuide, esse relato já terá valido a pena.

A segunda razão é que ao longo deste período ouvi casos de gente que teve câncer e manteve segredo, com medo de que isso impactasse sua empregabilidade. Para meu espanto, há empresas que evitam recrutar gente que enfrentou esse problema – ou contratam apenas quando o candidato está há mais de cinco anos sem apresentar novos sintomas.  No Brasil, a previsão é de que um total de 625 mil novos casos de câncer de todos os tipos sejam diagnosticados em 2020. É muita gente.

 
Talvez seja hora de aproveitar a grande preocupação com saúde despertada pela pandemia e entender que outras doenças graves, como essa, estão à espreita. Mantê-las em segredo ou evitar dizer o nome delas não fará com que desapareçam.
 
Cristiane Correa é autora de “Sonho Grande”, “Abilio” e “Vicente Falconi”.