O namoro começou há dois anos.  Mas depois de um “teste drive,” a Boeing decidiu unilateralmente deixar a noiva no altar, colocando toda a culpa na Embraer e se recusando a pagar o “dote” combinado de US$ 4,2 bilhões.
 
Agora, a Embraer vai buscar seus direitos na arbitragem, mas outras partes prejudicadas também precisam ir à luta.
 
Há três perguntas a ser respondidas. Pelo quê a Embraer deve brigar? Quem deve brigar? E como deve ser essa briga?
Quem teve acesso ao contrato diz que a Boeing não tem como usar a pandemia para invocar a ‘material adverse change’ — a cláusula que permite cancelar um negócio sem ônus porque o mercado mudou materialmente.
 
Por isso mesmo, a Boeing está alegando que a Embraer não cumpriu algumas das condições precedentes e por isso não se viu obrigada a continuar com a transação, cujo prazo venceu no final de abril.
 
Mas qual é a verdade dos fatos?
Quando o negócio foi assinado, em janeiro de 2019, a Boeing queria melhorar sua capacidade de desenvolvimento de projetos.  Como se sabe, a empresa americana teve uma performance “excelente” no 737 Max, e via o capital humano da Embraer (seu pool de engenheiros capacitados) como crítico para o seu projeto do novo 767, o NMA (New Midsize Airplane) para atender o mercado americano. 
 
A Boeing via também a possiblidade de brigar nos aviões regionais com o E2 da Embraer, sem falar no interesse que tinha no projeto do KC-390, da área militar.  Ao tentar encerrar unilateralmente o negócio, a Boeing inclusive disse que gostaria de continuar com a JV no KC-390.  (Corretamente, o management da Embraer teve que declinar da proposta em função da arbitragem.)
A desistência da Boeing é fácil de entender.
 
Com a pandemia, as encomendas de novas aeronaves foram canceladas ou postergadas, o que vai destruir o fluxo de caixa da companhia. 
 
O projeto do NMA também foi adiado sabe-se lá pra quando e, portanto, a absorção do pool de engenheiros deixou de ser uma necessidade iminente.
 
Isso sem falar na novea do ‘Mad MAX’.  Desde agosto de 2019 a Boeing mantém mais de 380 aeronaves 737 Max no solo. Cada avião destes, parado, custa à empresa cerca de US$ 100 milhões em manutenção e treinamento não vendidos por ano (fora os processos), uma hemorragia de caixa de “apenas” US$ 38 bilhões. (A capitalização de mercado da Boeing hoje é de US$ 80 bilhões). 
 
Pelo quê a Embraer deve brigar?
 
A resposta curta é: por tudo. A Embraer gastou cerca de US$ 500 milhões em custos da transação, em boa parte para separar por completo o negócio de aviação civil, no qual a Boeing ficaria dona de 80%. 
 
Antes da assinatura do negócio, a Embraer vendia e entregava pelo menos seis aviões por mês. De janeiro até a agora, a Embraer entregou apenas 6 contra pelo menos 30 que deveriam ter sido entregues, um lucro cessante de pelo menos US$ 300 milhões. 
Não podemos nos esquecer também do prejuízo que será causado ao KC-390. Quando da assinatura do deal, a Boeing queria “morder” os contratos que já existiam com Portugal e Brasil, o que ratifica a atratividade do projeto. Essa JV deveria de fato produzir resultados substanciais, uma vez que a ideia era produzir fuselagem e asas em São José dos Campos e fazer a montagem final no Texas para enquadrar o projeto no “Buy American Act”, o que facilitaria e aumentaria as vendas. Agora, bilhões de dólares serão perdidos.
Muito se fala no “breakup fee” do contrato. Nos Estados Unidos esse dado é divulgado. Na média os breakup fees variam de 3% a 5% do valor do contrato. Aparentemente, no contrato há a previsão de um breakup fee de apenas US$ 100 milhões — e a Boeing já disse que não vai pagar. 
 
Nisso a Boeing está certa:  não há que se falar apenas em breakup.  O prejuízo da Embraer foi muito maior. 
Quem deve brigar? O management e o conselho já estão fazendo a sua parte. Mas a Embraer é uma corporation, com ações listadas na B3 e na NYSE, e seus acionistas precisam se organizar e ir à luta. 
 
Trabalho com M&A há 20 anos e todos sabem que já briguei muito. Em várias transações que fiz, vi acionistas se organizarem e tentarem melhorar os termos da transação. Gestores que brigam por uma melhor governança, que defendem o direito dos minoritários, onde estão vocês? Ou alguém se conforma em ser o personagem português da música dos Mamonas Assassinas?  Vocês não se sentem prejudicados?
Reguladores e juristas brasileiros também precisam entrar na briga.  Nos Estados Unidos, quando os acionistas se sentem prejudicados, existe uma indústria de litígio para ir atrás dos seus direitos. A XP fez seu IPO na Nasdaq e, depois que o papel caiu, acionistas e escritórios de advocacia americanos inventaram acusações infundadas e estão brigando. Não acho que devemos nos tornar litigantes como os americanos, mas não podemos ser os bobos da corte.
Isso nos traz à terceira pergunta: como deve ser essa briga? Respondo: com tiro, porrada e bomba. 
 
Deixar um ícone nacional ser agredido dessa forma e não fazer nada é simplesmente inaceitável. 
 
Os “azuis” — os militares da Aeronáutica que participaram da negociação — têm que se manifestar e cobrar uma resposta contundente do Governo, talkey Presidente? 
 
Talvez valha a pena rediscutir a relação com o Governo Trump: essa parceria, se de fato existe, precisa ser real.  
 
Os acionistas têm que se manifestar. Onde está a Brandes Capital, que sempre brigou pela governança da Oi?  Sua participação na Embraer não vale a pena? 
 
Não dá para deixar o management brigar sozinho. Talvez valha a pena dar aos americanos o mesmo remédio que prescrevem a todos: uma bela de uma ‘class action’ contra a Boeing pelas perdas causadas à Embraer.  Isso cabe aos acionistas. 
Só para lembrar: desde 22 de abril, dia do cancelamento, a ação da Embraer cai 26% e a da Boeing sobe 6%.
 
Senhores acionistas e autoridades: a música do Mamonas segue tocando. Todos sabemos quem está fazendo o papel do português.
 
Marco Gonçalves é CEO da Riza Capital.