Há cerca de uma década, um cliente estrangeiro e negro veio ao Brasil para a sua visita anual. Estávamos em novembro, e durante o jantar comentei com ele que se tratava do mês da consciência negra e que no dia 20 algumas municipalidades decretaram feriado marcando a data em que o Zumbi dos Palmares havia sido morto pelos bandeirantes. Logo depois, emendei “acho muito triste que haja a necessidade de existir tal data” – até que eu explicasse a ele que minha intenção era dizer que a consciência ao problema deveria ser diária e constante, houve um certo mal-estar.

 

Desde então, entendi o quão sensíveis são estas questões e, apesar de ser um tema extremamente caro para mim, meço as palavras ao me posicionar sobre o assunto. Por outro lado, a delicadeza da questão não pode criar imobilismo. Este é um assunto crítico que precisa ser debatido urgentemente pelo mercado financeiro, predominantemente branco.

 

É natural que as pessoas não se vejam como racistas e que sequer se deem conta da dimensão do problema. Ao mencionar “racismo”, nosso modelo mental nos leva às bizarras cenas do apartheid na África do Sul ou aos filmes que retratavam a segregação racial nos EUA até os anos 60/70. E, por não termos situações idênticas em larga escala no Brasil, concluímos não haver racismo. Talvez seja hora de desafiar tais crenças.

 

No excelente filme “O ódio que você semeia” (The Hate U Give), o personagem Chris, um adolescente branco, fala para a sua namorada Starr, negra: “Branco, negro, o que importa? Somos todos iguais (…) eu não vejo cor, eu vejo as pessoas como elas são” e ela responde: “Se você não enxerga a minha negritude, você não me enxerga”. Poderoso.

 

Em 2020, alguns acontecimentos que trouxeram um componente racial poderiam ter sido vistos por outro prisma. Muito se falou, por exemplo, que Lewis Hamilton, negro, se tornou o maior piloto da Fórmula 1 de todos os tempos, mas pouco se comentou sobre o fato dele ter sido o único negro entre os 775 pilotos da modalidade em sete décadas de história. Muito se falou da brutalidade do assassinato de George Floyd, mas a iconização do mesmo fez esmaecer crimes semelhantes que ocorrem no Brasil todos os dias. Muito se falou de uma mulher negra ter sido eleita vice-presidente dos EUA, mas o fato das pesquisas de boca de urna terem apontado que 91% dos negros votaram em Biden foi menos comentado.

Segundo um estudo do Insper, homens brancos ganham mais do que o dobro de mulheres negras na mesma função e mesmo grau de instrução. Em recente pesquisa da consultoria iDados, 38% dos homens negros com ensino superior ocupam cargos de nível médio ou fundamental no Brasil; entre os brancos, este percentual cai para 29,6%. Há dezenas de estatísticas que ilustram o mesmo fato e cuja explicação é embaraçosa de ser dada. Em pesquisa mais antiga, o Datafolha apontou que 89% das pessoas afirmam existir racismo no Brasil, mas 90% se identifica como não racista. Faz sentido?

 

Saindo do mundo das estatísticas e aterrissando no mercado financeiro, pergunto: dentre as empresas em que você investe, quantos tem CEOs negros? Ou conselheiros? Ou diretores? Parabéns se a resposta for maior do que um.

 

Abstraindo de nosso compromisso moral e ético e focando exclusivamente no lado pragmático, de acordo com estudo realizado pela McKinsey, empresas com diversidade étnica apresentam 33% mais chances de superar seus pares em termos de lucratividade.

 

Generalizações e rotulações sempre são complicadas de serem feitas, ainda mais em se tratando de observações a partir de percepções sem metodologia científica, mas através de experiências pessoais, enxergo três tipos de empresas: (A) as que não tem a menor preocupação com equidade racial; (B) as que se incomodam muito com o assunto, mas tem dificuldade de preencher vagas de liderança para negros por “escassez” de mão de obra e (C) as que se escondem atrás da narrativa da escassez para nada fazerem.

 

O emblemático programa de trainees para negros promovido pela Magazine Luiza trouxe uma externalidade tão ou mais positiva do que o programa em si: o debate sobre o papel das companhias nas questões de equidade racial. Sucederam-se ao programa da Magalu uma série de ações afirmativas por várias outras companhias de diferentes tamanhos e setores.

 

Definitivamente, a sociedade civil está mais vigilante no assunto e, de uma declaração desastrada da co-fundadora do Nubank em um programa de TV, foi construída um dos programas mais sólidos e abrangentes já anunciados no país nesta esfera em menos de um mês. O jogo virou.

 

Uma famosa citação da filósofa americana Angela Davis diz “não é suficiente não ser racista, é necessário ser antirracista”. Muitas companhias compreenderam e assimilaram a mensagem e passaram a levantar esta bandeira. A Nike, por exemplo, substituiu o célebre slogan “Just Do It” para “Don’t Do It” em diversas peças publicitárias na qual ataca fortemente a inequidade racial.

 

Além da responsabilidade social, muitas empresas já perceberam que o posicionamento contundente nas questões raciais é muito importante para atender o anseio de uma legião de consumidores, especialmente os da geração Z. O silêncio ou indiferença já não é mais uma opção.

 

Importante ressaltar que estes mesmos jovens também compõem a força de trabalho. Companhias que respeitam diversidade e que trazem a questão da inclusão para o topo de sua agenda, também serão capazes de atrair e reter talentos.

 

De novo, ainda que não fosse pelo compromisso ético e moral, as empresas deveriam observar que a inclusão racial aumenta a chance de melhores resultados, contribui para a atração de talentos e fideliza consumidores. Pragmaticamente falando, equidade racial também é um bom negócio. Às empresas do tipo “A” descritas acima: que sirva de aviso.

 

Segue então o desafio do recrutamento ante a “escassez” de mão de obra negra. As empresas do tipo “C” repetem o mantra da meritocracia para seguirem esbranquiçadas: “afinal, contratamos os melhores, nada podemos fazer se eles são brancos”. Podemos até entender o argumento, mas é preciso observar que ele seria justo se todos tivessem oportunidades iguais e ao cegar-se a este fato, a tendência é de agravar o problema. E, mais do que isso, precisamos refletir qual dos veículos tem o melhor piloto: uma Lamborghini a 250 km/h ou um Fusca a 200 km/h?

 

Para as empresas do tipo “B”, que legitimamente buscam a inclusão racial, mas se veem com poucas alternativas, vale uma reflexão. O conceito de sustentabilidade mistura-se com o de perenidade. Portanto, buscar soluções de curto prazo sem endereçar as questões estruturais de longo prazo configura-se em uma batalha inglória com baixa chance de êxito. Ainda que haja estatísticas e pesquisas acadêmicas afirmando alguns bons resultados das políticas de cotas, é apenas investindo na educação qualificada de negros e definindo metas ambiciosas de longo prazo é que a questão poderá ser resolvida estruturalmente.

Há uma série de instituições que vem tratando deste tema, tais como Identidades do Brasil (IdBr), CEERT, Preta Hub, BlackRocks, Baobá, Blend.Edu, Ibirapitanga, Instituto Ethos entre muitas outras que funcionam como redes de apoio à causa e/ou discussão de políticas públicas.

 

Sou judeu. Em 2018, depois de muita relutância, decidi visitar Auschwitz. Não fosse o ombro amigo de minha esposa Stephanie, eu não teria suportado aquelas duas horas de tour. Ao sair de lá, eu disse a ela: “seria espetacular que todas as escolas do planeta tivessem condições de trazer as crianças para verem até que ponto pode chegar a crueldade humana”. Refletindo agora, naquele momento provavelmente meu desejo era que o mundo todo tivesse empatia pela dor do meu povo.

 

Está mais do que na hora desta empatia ser estendida à equidade racial. Este é um assunto que precisa definitivamente ser inserido na realidade das empresas e dos investidores que, em última instância, são importantes agentes de transformação. Não há nada mais ultrapassado do que o mercado financeiro se esquivar deste debate.

Fabio Alperowitch é fundador da Fama Investimentos. 

Foto acima:  À margem do céu (2020), de Tiago Sant’Anna.