Antes de Elon Musk, apenas um único titã do mundo tech atraiu com tamanha intensidade as reações antagônicas de admiração e desprezo.

Seu nome é William Henry Gates III, o dropout de Harvard que preferia se manter distante da ebulição dos movimentos civis dos anos 1970 e virava noites estudando programação até criar aquela que seria a mais valiosa empresa do mundo.

Prestes a completar 70 anos e festejar os 50 anos de fundação da Microsoft, Gates decidiu publicar sua autobiografia, cujo primeiro de três volumes previstos acaba de chegar ao Brasil.

Em Código-fonte: Como tudo começou (Companhia das Letras; 376 páginas), Gates repassa seus anos de formação. Fala dos pais ambiciosos e exigentes, da descoberta da computação ainda no colégio em Seattle, das caminhadas desafiadoras nas montanhas com amigos de juventude e da parceria com Paul Allen – o colega de infância que o apresentaria ao álcool e ao LSD, antes de ser seu sócio na fundação da Microsoft.

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Típico menino de pouco traquejo social, magricela e pouco competitivo nos esportes, Gates encontrou um jogo em que poderia ser o líder: a programação.

“A lógica, o foco e a resistência necessários para escrever programas longos e complicados eram naturais para mim,” ele conta num trecho do livro (ver excerto abaixo). “Ao contrário da caminhada, entre aquele grupo de amigos eu era o líder.”

A certa altura do livro, Gates comenta que muito provavelmente receberia o diagnóstico de pertencer a alguma parte do espectro do autismo, se hoje estivesse na infância. Ele atribui a isso a sua falta de empatia em algumas situações, como na morte marcante, aos 17 anos, de um de seus amigos mais próximos em um acidente quando fazia montanhismo.

“Ao longo da minha vida, tive a tendência de lidar com as perdas fugindo delas,” escreve.

Mas apesar de se ressentir de algumas atitudes do passado, diz que “não mudaria em nada o cérebro que me foi dado.”

A seguir, um trecho do livro.

***

Por volta dos treze anos, comecei a andar com um grupo de garotos que saía para longas caminhadas pelas montanhas nos arredores de Seattle. Havíamos sido escoteiros juntos. Realizávamos várias trilhas e acampamentos com a tropa de escotismo, mas logo constituímos uma espécie de grupo à parte e começamos a empreender nossas próprias expedições — e era assim que as encarávamos, como expedições. Queríamos mais liberdade e mais risco do que as viagens com os escoteiros tinham a oferecer.

Andávamos geralmente em cinco – Mike, Rocky, Reilly, Danny e eu. Mike, o líder, era um pouco mais velho do que nós e tinha muito mais experiência ao ar livre.

Por cerca de três anos, caminhamos juntos centenas de quilômetros. Desbravamos a Olympic National Forest, a oeste de Seattle, e a Glacier Peak Wilderness, a nordeste, e fizemos trilhas pela costa do Pacífico. Geralmente ficávamos fora por sete ou mais dias seguidos, guiados apenas por mapas topográficos em meio a florestas virgens e praias rochosas, onde tentávamos cronometrar as marés (valendo pontos).

Durante as férias escolares, saíamos em longas viagens, caminhando e acampando sob qualquer clima, o que, no noroeste do Pacífico, muitas vezes significava uma semana com a calça de lã, comprada em loja de artigos militares, encharcada e coçando, e os dedos dos pés parecendo uvas-passas. Não fazíamos escaladas. Nada de cordas e cintas, tampouco faces rochosas. Apenas longas e árduas caminhadas. Nenhum perigo além do fato de sermos adolescentes avançando por um território montanhoso, a muitas horas de algum socorro e bem antes da existência de telefone celular.

Com o tempo, passamos a ser uma equipe confiante e unida. Ao final de um longo dia de caminhada, escolhíamos um lugar para acampar, e, praticamente em silêncio, cada um se ocupava das suas tarefas. Mike e Rocky costumavam amarrar a lona que nos serviria de teto à noite. Danny saía para recolher galhos secos, e Reilly e eu ficávamos incumbidos de juntar gravetos e galhinhos e acender a fogueira.

Então, era hora de comer. Comida barata que não pesava nas mochilas, mas substancial o bastante para nos dar energia para a caminhada. As melhores refeições que já fiz. No jantar, fatiávamos um apresuntado em lata e misturávamos com macarrão instantâneo Hamburguer Helper ou um pacote de preparado de estrogonofe de carne. De manhã, podia ser leite com Carnation Instant Breakfast ou um pó que, diluído em água, virava uma omelete ao estilo do Oeste, pelo menos segundo a embalagem. Minha refeição matinal preferida: Oscar Mayer Smokie Links, uma salsicha vendida como “pura carne”, hoje descontinuada.

Preparávamos boa parte da comida com uma única frigideira, tendo como louça as latas de alumínio vazias que cada um carregava, depois transformadas em baldes para buscar água, panelas, tigelas de aveia. Não sei qual de nós inventou o suco de framboesa quente. Não que fosse uma grande inovação culinária: simplesmente dissolva o pó de gelatina em água fervida e beba. Era tanto uma sobremesa quanto uma injeção de glicose matinal antes de um dia de caminhada.

Estávamos longe dos nossos pais e do controle de quaisquer adultos, escolhendo o rumo a seguir, o que comer, quando dormir, avaliando sozinhos que riscos correr. Na escola, nenhum de nós era descolado. Só Danny praticava um esporte organizado – basquete –, o qual não demorou a largar a fim de ter tempo para nossas andanças.

Eu era o mais magro do grupo e geralmente o que ficava com mais frio, além de sempre me sentir mais fraco que os outros. Ainda assim, eu gostava do desafio físico e da sensação de autonomia. Embora as trilhas estivessem se popularizando pela região, não havia muitos adolescentes dispostos a caminhar por conta própria na natureza durante oito dias.

Isso posto, estávamos na década de 1970, e a atitude em relação aos filhos era mais relaxada do que hoje. As crianças tinham mais liberdade, de modo geral. E quando cheguei à adolescência, meus pais haviam aceitado o fato de que eu era diferente da maioria dos meus colegas e precisava de certa dose de independência para encontrar meu caminho no mundo. O consentimento deles fora obtido a duras penas – especialmente no caso da minha mãe –, mas teria um papel determinante na pessoa que eu me tornaria.

Hoje, olhando em retrospecto, estou certo de que todos nós procurávamos algo nessas excursões que ia além da camaradagem e da sensação de realização. Estávamos naquela idade em que as crianças testam seus limites, experimentam diferentes identidades – e, fora isso, às vezes sentem um anseio por experiências maiores, até mesmo transcendentes. Eu começara a evidenciar claramente o desejo de descobrir qual seria meu caminho. Não sabia muito bem que rumo ele tomaria, mas precisava ser interessante e relevante.

Além disso, nessa época, eu também passava bastante tempo com outro grupo de meninos. Kent, Paul, Ric e eu frequentávamos a mesma escola, a Lakeside, que, de algum modo, conseguira um grande mainframe com o qual os alunos se conectavam por meio de uma linha telefônica. Era incrivelmente raro na época que adolescentes tivessem acesso a qualquer tipo de computador. Nós quatro adorávamos aquilo, dedicando todo nosso tempo livre a escrever programas cada vez mais sofisticados e explorar o que conseguiríamos fazer com aquela máquina eletrônica.

À primeira vista, as caminhadas e a programação não poderiam ser mais diferentes. Mas as duas coisas eram como uma aventura. Com ambos os grupos de amigos, eu explorava novos mundos, viajando a locais que a maioria dos adultos nem sequer conhecia. Assim como a caminhada, a programação se encaixava em mim porque me permitia definir minha própria medida de sucesso, e ela parecia ilimitada, não determinada por quão rápido eu conseguia correr ou quão longe eu conseguia arremessar.

A lógica, o foco e a resistência necessários para escrever programas longos e complicados eram naturais para mim. Ao contrário da caminhada, entre aquele grupo de amigos, eu era o líder.

Sem volta

No final do meu segundo ano, em junho de 1971, Mike me ligou para falar sobre nossa próxima viagem: oitenta quilômetros pelas montanhas Olímpicas. A rota que ele escolheu era chamada de Trilha da Expedição de Imprensa, em homenagem ao grupo patrocinado por um jornal que explorara a área em 1890. Você está falando do mesmo trajeto em que os caras quase morreram de fome e suas roupas apodreceram no corpo? É, mas isso faz muito tempo, respondeu ele.

Oito décadas depois, a caminhada ainda seria difícil; aquele ano havia trazido muita neve, então era uma proposta particularmente assustadora. Mas, como todos os demais – Rocky, Reilly e Danny – estavam determinados a isso, não seria eu a pular fora. Além disso, um escoteiro mais novo, um cara chamado Chip, também havia topado. Não tinha como eu não ir.

O plano era subir o desfiladeiro de Low Divide, descer o rio Quinault e depois voltar pela mesma trilha, pernoitando em abrigos de madeira ao longo do caminho. Seis ou sete dias no total. O primeiro dia foi moleza, e passamos a noite em um lindo campo coberto de neve.

Por um ou dois dias, à medida que subíamos o Low Divide, a neve ficava cada vez mais funda. Ao chegarmos ao local onde planejávamos passar a noite, o abrigo estava soterrado pela neve. Sem dar bandeira, desfrutei de um momento pessoal de euforia. Certamente, pensei, voltaríamos para um abrigo muito mais acolhedor pelo qual já havíamos passado naquele dia. Acenderíamos uma fogueira, fugiríamos do frio, comeríamos alguma coisa.

Mike sugeriu uma votação: dar meia-volta ou seguir em frente até o destino final. Ambas as opções significavam caminhar por várias horas. “Passamos por um abrigo lá embaixo, uns quinhentos metros. Podemos voltar e ficar lá, ou seguir até o rio Quinault”, disse Mike. Ele não precisou dizer que voltar significava abortar nossa missão de chegar ao rio.

“O que acha, Dan?”, perguntou Mike. Danny era extraoficialmente o segundo no comando do nosso pequeno grupo. Além de ser o mais alto da turma e ter pernas longas e fortes que pareciam nunca se cansar. Sua palavra seria crucial para a votação.

“Bem, estamos quase lá, talvez devêssemos continuar”, respondeu Danny. Conforme as mãos eram levantadas, ficou claro que eu era minoria. Nós seguiríamos em frente.

Depois de alguns minutos de caminhada pela trilha, falei: “Danny, estou decepcionado. Você poderia ter impedido isso”. Eu estava brincando – até certo ponto.

Lembro-me do frio e do desconforto que passei nesse dia. Também me lembro do que fiz em seguida. Fechei-me em meus próprios pensamentos. Imaginei um código de computador.

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