O Evangelho de João narra o episódio: quando o Cristo ressuscita, Ele é recebido em festa por seus discípulos. Um deles, Tomé, não estava no grupo que saudou o Messias. Informado do milagre, Tomé, num primeiro momento, duvida do ocorrido.

O discípulo, segundo a Bíblia, diz que, para ter certeza do fato, precisa olhar as mãos do Nazareno para se certificar das marcas deixadas pelos cravos. Mais ainda, Tomé diz que para ter certeza da informação deve colocar as mãos nas feridas. Sem isso, não acreditaria no retorno de Jesus.

Finalmente, narram as Escrituras, alguns dias depois, o Messias aparece para o incrédulo Tomé. O próprio Jesus toma a iniciativa de solicitar a Tomé que toque em suas feridas, a fim de se certificar da verdade. Tomé, apenas depois de encostar nas chagas do ressuscitado, se convence de que seu Mestre estava ali, cumprindo a profecia de seu regresso.

Jesus, com doçura, repreende o descrente: “Bem-aventurados os que não viram e creram.” Tomé, na mitologia cristã, é quem precisa da prova visual. A partir daí, com frequência, repete-se para um desconfiado que ele é como São Tomé, pois “tem que ver para crer”.

A imagem serviu, por séculos, como o teste supremo da veracidade. Quando a tecnologia avançou e nos permitiu registrar as imagens – primeiro, a imagem estática e, depois, imagens em movimento – essas se tornaram as grandes evidências da realidade. Fotos e vídeos foram, por muito tempo, tomados como provas da certeza irrefutável das cenas retratadas. Para grande parcela da humanidade, só se acreditou que o ser humano havia pisado na Lua por conta da foto icônica de Buzz Aldrin, tirada por Neil Armstrong em 1969.

Dizia-se também, correntemente, que uma imagem vale mais que mil palavras. De nada adiantava o melhor argumento para negar um fato se, do outro lado, houvesse uma gravação visual atestando o contrário. Até mesmo numa das passagens mais clássicas da nossa literatura, narrada por Gonçalves Dias, o velho Tupi assegurava a veracidade do que dizia garantindo a todos: “Meninos, eu vi!”.

Bastava ver para crer.

Esse paradigma acaba de ser rompido. A inteligência artificial já consegue produzir qualquer imagem com perfeição. A máquina criou um mundo paralelo. A realidade tornou-se relativa, pois é possível apresentar um filme verossímil com qualquer conteúdo – como se vê nas mídias, por exemplo, imagens do Presidente Vladimir Putin abraçando carinhosamente o líder ucraniano Zelensky, quando, na realidade, os dois estão em guerra ou, ainda, um curta metragem com o fictício casamento dos velhinhos Elvis Presley e Marilyn Monroe, embora se saiba que, na verdade, não apenas eles jamais se casaram como faleceram há décadas. As cenas, produzidas pela tecnologia, são perfeitas, extremamente realistas, a ponto de não nos permitir distinguir o real do imaginário.

Atualmente, portanto, já não se pode crer em tudo que se vê. Ao contrário, as pessoas atentas têm, por prudência, o dever de questionar o que veem. As imagens que chegam pelas mais variadas mídias demandam o escrutínio da razoabilidade e do bom senso. A visão perde lugar para a inteligência e o espírito crítico.

Mil palavras devem, a partir desse novo paradigma, valer bem mais do que qualquer imagem. Imagens, para que ganhem confiança, precisam vir acompanhadas de um contexto, a fim de que o receptor possa aferir se merecem consideração. Eis a nova educação: pensar no que as imagens nos dizem, para, de forma construtiva, duvidar delas.

A sensibilidade também precisa ser afiada. Numa conhecida passagem de Hamlet, Shakespeare coloca nos lábios do angustiado príncipe dinamarquês a seguinte declaração de amor: “Duvides que as estrelas sejam fogo, duvides que o sol se mova, duvides que a verdade seja mentira, mas não duvides jamais de que te amo.”

O Bardo, sempre premonitório, nos ensina: confie mais nos seus sentimentos do que em qualquer outra coisa –  uma premissa fundamental no mundo do “deepfake”.

Talvez, em breve, promova-se um “revolucionário” meio de aferir a realidade, no qual apenas se admita como crível o que for físico, concreto e imediato. Os “novos-Tomés”, para tomar por genuína alguma informação, apenas se satisfarão se ela for colhida diretamente da fonte, sem o intermédio de qualquer mídia. Não se admitirão intermediários entre o fato e os olhos – esses que a terra há de comer.

Somente ouvindo e vendo a manifestação da pessoa, na presença dela, ter-se-á a segurança de que não houve manipulação ou criação gráfica do computador. A partir daí, partiremos do pressuposto de que as imagens que nos chegam nas telas são todas duvidosas e refletem um mundo paralelo. Sem escolhas, eis a nova educação: duvidar de tudo o que vemos.

Pobre de quem ainda não entendeu esta dinâmica. Infelizmente, muitos que não perceberam a mudança dos tempos seguem confiando tolamente no que veem. Servem de presa fácil para a manipulação, recebendo e difundindo imagens irreais, tomadas por verdade. Dessa ignorância nasce uma corrente de desinformação, alimentando a realidade paralela.

As palavras de Jesus, registradas no Evangelho, ganharam um sentido atual e profundo: “Bem-aventurados os que não viram e creram”. A verdade, nos dias de hoje, se revela pelo pensamento crítico, não mais pelos nossos olhos.

José Roberto de Castro Neves é sócio do Ferro, Castro Neves, Daltro & Gomide Advogados e membro da Academia Brasileira de Letras.