Filho de Vassouras — a cidade fluminense que sem ter uma faculdade de direito deu ao Brasil quatro ministros do Supremo — Luís Roberto Barroso acaba de colocar no papel as ideias que já externalizava em entrevistas e votos. 

O resultado é o livro Sem Data Venia (História Real, 258 páginas, R$ 29,90), publicado pelo novo selo do veterano editor Roberto Feith.

11382 9a42807c c03d 6b50 0fa0 7da0b535af53Na parte inicial, autobiográfica, Barroso conta os três episódios da história brasileira que mais lhe marcaram pessoalmente: a morte sob tortura de Vladimir Herzog, o atentado do Riocentro, e o povo na rua pelas Diretas Já.

Como nenhum homem é um acidente, não é à toa que estes milestones tenham moldado a visão de mundo daquele que talvez seja o ministro mais progressista de um STF que, para muitos, é a última linha de defesa da cidadania; para outros, parte do problema. 

No livro, Barroso discute temas mundiais como a crise da democracia, o avanço do populismo autoritário, e o aquecimento global, que ele considera uma das questões definidoras do nosso tempo. 

“Eu não tenho a visão de que tudo está ruim com tendência a piorar,” Barroso disse ao Brazil Journal. “Pelo contrário, eu acho que o mundo anda na direção do avanço civilizatório.”

Numa terceira parte, o assunto é o Brasil — seu berço esplêndido e suas enormes contradições. 

O Ministro discorre sobre corrupção, reforma política, pobreza, desigualdade, costumes, o jeitinho brasileiro — e o lado bom e o ruim do próprio Supremo.

Quem tem horror à linguagem empolada das sessões do STF e seus rococós semânticos pode perder o medo: Barroso escreve claro e direto, sem vênia, como o título promete.

“Tentei desenvolver cada ideia em, no máximo, cinco páginas A4,” brinca o Ministro. “Eu venho de um mundo de pessoas muito prolixas e tornei a objetividade e simplicidade obsessões na minha vida.”  

Abaixo, a conversa de Barroso com o Brazil Journal. 

Num País polarizado, com gente morrendo ao redor e a economia desempregando milhões, o senhor consegue ser otimista?

Otimismo neste momento só quem estiver de costas para a realidade. Nós vivemos um momento muito duro. Mas uma atitude construtiva diante da tragédia, isso eu acho que é possível. Eu gosto de lembrar que nos últimos cinco anos de recessão nós vivemos num momento muito difícil no Brasil, mas que nos 32 anos de democracia o IDH do Brasil foi o que mais cresceu na América Latina. 

Nós tivemos vitórias expressivas contra a pobreza extrema. Tivemos avanços relevantes na universalização da educação básica. A qualidade ainda é um problema, mas quantitativamente nós expandimos de forma muito significativa, de modo que se olharmos em perspectiva histórica, a história do Brasil é uma história de sucesso. De um País andando na direção certa, ainda que não na velocidade desejada.

Eu li um artigo do Marcelo Neri, que fez um comentário muito interessante: ‘nós vivemos um momento econômico delicado, mas tivemos muitos avanços sociais no Brasil’. 

Qual a agenda mínima para o Brasil neste momento?

Uma agenda construtiva a meu ver envolve três pactos. O primeiro é um pacto de integridade. Não seremos desenvolvidos com os padrões de ética pública e privada que temos hoje no Brasil. Esse pacto de integridade tem só duas regras, muito simples: no espaço público, não desviar dinheiro, e no espaço privado, não passar os outros para trás. Essa é a grande revolução brasileira. 

O segundo pacto é um pacto de tríplice responsabilidade: a fiscal, já que um país que consistentemente gasta mais do que arrecada gera as consequências que estamos vivendo agora, de recessão, desemprego e desinvestimento, independente da pandemia; a econômica, que significa reduzir essa presença econômica do Estado que é ineficiente e frequentemente corrupta; e a social, que é investimento em educação básica, no SUS, que se revelou a salvação do País, num sistema tributário mais justo, e em redes de proteção social para quem não é competitivo porque não pode ser. 

O último pacto é pela educação, sobretudo pela educação básica. Foi isso que nos atrasou na história. Só universalizamos a educação básica 100 anos depois dos Estados Unidos. 

O Judiciário entende que ele tem responsabilidade pela insegurança jurídica que aumenta o custo do capital no Brasil? Tem juiz que com uma canetada derruba pedágio, outros anulam contratos…

Eu posso falar pelo Supremo, e não pelo Judiciário em geral. E eu acho que o STF, de uns tempos para cá, incluiu essa preocupação com segurança jurídica e com custo Brasil no rol de suas preocupações.   

Antigamente dizia-se: ‘tão burrinho pra matemática, vai ter que fazer Direito…’ [risos]  Hoje em dia já se tem uma consciência de que o juiz também precisa saber fazer conta. O meu critério pessoal de julgar as questões é avaliar quem paga a conta. E geralmente, se gera déficit, o meu raciocínio default é contrário, porque o que gera déficit no fundo está sendo pago pelas pessoas mais pobres, que é sobre quem recai a arrecadação tributária no Brasil. 

O senhor faz parte de uma ala reformista do STF. Mas o senhor considera que o Supremo que está aí é reformista?

Seria preciso qualificar exatamente o que é reformista. Todas as pessoas têm uma visão ideológica da vida — não ideológica no sentido de política partidária, mas daquilo que você considera correto, justo e legítimo. 

Eu tenho uma visão de que a iniciativa privada, a livre iniciativa é a melhor forma de geração de riqueza. Portanto, eu considero que ser progressista é abrir espaço para a livre iniciativa. Por outro lado, acho que o papel do Estado é neutralizar desigualdades e assegurar igualdade de oportunidade. 

Eu sou a favor de sistemas tributários que não sejam concentradores de renda, de investimento em educação, de investimento em saúde e de prestação de serviços públicos de qualidade. Esse é o equilíbrio que acho que deve haver. A melhor forma de geração de riqueza é a livre iniciativa e o papel do Estado é ter políticas razoáveis de redistribuição. 

O problema do sistema tributário brasileiro, a meu ver, é que ele é regressivo. Mas acho que para tudo há um limite razoável a partir do qual você também tem fugas de capital. Então minha visão é essa: livre iniciativa e Estado no papel de redistribuição de renda, com um sistema tributário justo, educação básica e serviços públicos de qualidade. E, em matéria de costumes, eu sou progressista de uma maneira geral.

Ministro, o Brasil precisa de muitas reformas nas instituições, na economia. O senhor acha que os juízes mais jovens, que poderão um dia ascender aos tribunais superiores, têm uma mentalidade mais aberta a todas as reformas que o Brasil precisa?

Olha, nós somos um País, uma sociedade historicamente viciada em Estado. E no qual há um grande preconceito em relação à economia de mercado e à livre iniciativa. Um pouco por essa dependência paternalista, que é muito ruim, e um pouco por associar o sucesso empresarial a favorecimentos do governo, a licitações de carta marcada, a golpes do mercado financeiro, a latifúndios produtos de má distribuição de terra. 

O imaginário social brasileiro ainda tem uma visão negativa da atividade privada, quando na verdade a atividade privada, se libertando desses estigmas, é feita de riscos, de inovação, de concorrência, que gera riqueza e aumenta os empregos.

Precisamos investir na superação desse preconceito. Às vezes a realidade — como o Mensalão e a Operação Lava-Jato revelaram — confirma um pouco alguns dos preconceitos, o que é uma pena.

Mas eu acho que a iniciativa privada fundada no investimento, no risco e na concorrência, essa precisa ser valorizada. Mas acho que ainda temos algum caminho a percorrer para nos libertarmos do vício em Estado e para passar a considerar que o lucro é um proveito legítimo de quem investe e toma risco. 

O senhor acha que essa mentalidade está mudando nos últimos anos no Brasil?

Não é um processo rápido. Basta olhar a dificuldade em se dar sequência às privatizações. E eu não estou falando das jóias da coroa — nem de Petrobras, nem de Banco do Brasil e nem Caixa Econômica. Estou falando de empresas estatais periféricas, e ainda assim você não consegue avançar nesse processo de privatizações. 

E aí há dois problemas: um é esse vício em Estado ao qual me referi, e o segundo é pior ainda, que é a colonização dessas empresas para propósitos indevidos. Elas atendem a interesses políticos que nem sempre correspondem ao interesse público e ao interesse nacional. 

O Judiciário — como boa parte do funcionalismo público — é muito criticado por não estar sujeito às mesmas vicissitudes econômicas que o resto do País. O senhor acha que o funcionalismo público precisa entrar no rateio da escassez?

O Estado administrativo brasileiro é grande demais. Se você somar Previdência e funcionalismo, dá 80% do orçamento, da arrecadação. É pelo menos 15 pontos percentuais a mais do que outros países no mesmo estágio de desenvolvimento. Precisamos reduzir o tamanho do Estado administrativo, esse Estado dos mais de 20 mil cargos em comissão, esse do excesso de empresas estatais. Temos que colocar essa questão na agenda.

Eu não diria que a solução passa propriamente pela redução de subsídios ou de remuneração. É muito difícil em qualquer parte do mundo você escolher esse caminho.  Mas eu certamente escolheria um caminho de enxugamento da administração pública, porque a sociedade brasileira não consegue pagar o custo do Estado brasileiro. 

O Brasil é um país onde o racismo estrutural é especialmente perverso, porque aqui vivemos sob o manto da cordialidade… Qual o caminho para quebrar o ciclo? Já temos as leis certas?  Falta o quê? 

Eu acho que faltava uma coisa que nós já temos adquirido, que é a consciência de que o problema existe. Porque, historicamente, nós trabalhávamos com a negação do racismo estrutural. Nós vivíamos no discurso do humanismo racial brasileiro, de que não havia discriminação, de que somos uma sociedade miscigenada, e de que o que há aqui é preconceito social. Se você conversar meia hora com uma pessoa negra, ela te dirá que isso não é verdade. Que é a cor da pele, o tom da pele, que faz a diferença.

Eu acho que essa consciência de que o problema existe já se desenvolveu no Brasil. E como vocês sabem o diagnóstico correto é o primeiro passo para qualquer cura. Acho também que o simples fato de três pessoas brancas estarem discutindo isso num jornal voltado para empresários já demonstra que essa é uma questão que entrou no radar da sociedade brasileira. Temos andado na direção certa, mesmo que não na velocidade desejada. Temos consciência, temos políticas de ação afirmativa no acesso à universidade, no acesso a cargos públicos. 

Eu faço um trabalho permanente de conscientização de que precisamos de ações afirmativas porque temos uma dívida histórica em relação à escravidão, há um racismo estrutural… Com a abolição, essas pessoas foram marginalizadas e não tiveram acesso à educação e aos bons cargos. E em terceiro lugar, precisamos criar símbolos de sucesso negros para que as crianças, os jovens negros se inspirem nesse exemplo, e não no do traficante. 

O senhor fez parte durante o Governo Fernando Henrique de uma comissão que discutiu o que fazer com a Lei de Segurança Nacional, talvez o último dos grandes entulhos autoritários. Chegou a hora dessa lei ser varrida dos livros?

Eu acho que certamente chegou a hora dela ser substituída. Como você mencionou eu participei dessa comissão, e nós elaboramos um projeto adicionando um título ao código penal e substituindo inteiramente a Lei de Segurança Nacional, que de fato é um entulho autoritário. Todos os Estados democráticos precisam de uma lei de defesa do Estado democrático contra crimes como traição, ajuda a adversários estrangeiros para conquistar o Brasil, ataques destrutivos às instituições. Portanto, acho que precisamos sim de uma nova lei e acho que muita coisa que tem na velha é incompatível com a Constituição. Ela tem alguns dispositivos naturais e óbvios, e outros que são inaceitáveis.

Agora, a matéria está posta perante o Supremo. Alguns dispositivos foram impugnados e sobre esses eu não posso falar, porque vou votar. Mas minha ideia no contexto é que é uma lei de um mundo que já passou, é uma lei autoritária e está na hora de substituí-la. 

A defesa das minorias avançou nos últimos anos em todo o mundo. O senhor acha que o Governo atual está fazendo a agenda retroceder, ou é só barulho?

Acho que avançamos no Brasil nós últimos anos em matéria de direitos das mulheres, direitos dos negros e direitos da comunidade LGBTIQ+. Acho que nós avançamos e, melhor que isso, acho que chegamos a um ponto de não retorno. 

A questão indígena, que é outra minoria onde havíamos avançado, está estacionada, se não em retrocesso. Mas os outros três movimentos chegaram a um grau de amadurecimento na consciência da sociedade que eu não acho que se possa voltar atrás. 

Portanto, não vejo perspectiva de não se admitir mais união de pessoas do mesmo sexo com os mesmos direitos, ou de não se admitir mais igualdade da mulher no casamento e no mercado de trabalho. Venha quem vier, esses avanços chegaram a um ponto de não retorno, felizmente.

Os avanços institucionais são essenciais, mas no discurso civil houve um retrocesso? O senhor acha que as pessoas intolerantes se sentem mais autorizadas a se manifestar?

Alguma coisa aconteceu de errado no mundo que, de repente, inúmeros demônios foram liberados e saíram às ruas… racistas, fascistas, homofóbicos, misóginos, supremacistas. Eu acho que é preciso resistir acendendo luzes na escuridão e dando um choque de iluminismo, que é o que o Brasil precisa verdadeiramente. 

Esse fenômeno é mundial: a onda do extremismo conservador e do populismo ocorreu na Hungria, Polônia, Turquia, Ucrânia, e mesmo nos EUA sob Trump. Esse fenômeno tem causas políticas, econômicas-sociais e causas culturais e identitárias. 

O pensamento progressista conseguiu muitas vitórias com uma agenda cosmopolita, multicultural, de defesa dos direitos humanos. O problema é que os progressistas venceram mas não convenceram, já que se contentaram com os louros da vitória e não foram atrás de trazer os que ficaram para trás. 

Eles não convenceram essas pessoas de que aquilo era o melhor para a causa da humanidade. 

Precisamos disputar uma batalha de ideias e de argumentos e tentar convencer as pessoas de que você discriminar alguém por ser gay ou trans é como discriminar alguém por ser judeu ou negro, ou por ser latino americano. Você está discriminando por um fator sobre o qual a pessoa não tem domínio. Não é sequer uma escolha, é uma circunstância da vida. 

Desrespeitar alguém por uma circunstância da vida que ela sequer causou é insustentável do ponto de vista racional e civilizado.