“Estamos em um momento delicado no Brasil. […] Estamos acumulando uma quantidade imensa de problemas que vão tornando as soluções mais custosas, mais difíceis.”
Eduardo Guardia, o ex-ministro da Fazenda e ex-secretário do Tesouro, fez os comentários acima em maio de 2021, numa entrevista ao podcast A arte da política econômica, da Casa das Garças.
Guardia – que morreu em abril de 2022, aos 56 anos, vítima de um tumor cerebral – sabia do que falava.
Estudioso profundo das finanças públicas e autor de uma dissertação de mestrado inovadora sobre o efeito da inflação no déficit fiscal que acabou influenciando a concepção do Plano Real, o economista enfrentou inúmeras crises em seus anos no Tesouro e na Fazenda – mas contribuiu decisivamente para colocar de pé reformas que evitaram o aprofundamento dos nossos problemas.
Agora, o livro Estado, economia, desafios fiscais e reformas estruturais no Brasil: Textos em homenagem a Eduardo Guardia (História Real; 528 páginas) recupera passagens marcantes de sua trajetória no setor público e traz análises sobre os dilemas a serem endereçados. (Compre aqui)
Organizado por Ana Carla Abrão, Ana Paula Vescovi e Pedro Malan, o trabalho reúne 32 autores, que assinam 22 artigos inéditos.
Entre os colaboradores estão alguns pais do Real – Edmar Bacha, Gustavo Franco e Persio Arida – e economistas que trabalharam ao lado de Guardia no Governo FHC – como Arminio Fraga e Luiz Fernando Figueiredo – e no Governo Temer, como Mansueto Almeida e Marcos Mendes.
O volume traz ainda a entrevista de Guardia ao Roda Vida em novembro de 2018, pouco antes de deixar o Ministério da Fazenda, e fala de sua atuação no setor privado, com passagens pela B3 e BTG Pactual.
No conjunto, o trabalho perpassa episódios marcantes da história econômica recente do País, como as ações de enfrentamento da crise legada pelo Governo Dilma, e dá a dimensão do trabalho que há pela frente.
Henrique Meirelles, que convidou Guardia para ser seu secretário-executivo na Fazenda no Governo Temer e o indicou para sucedê-lo à frente da Pasta, relembra que o período em que trabalharam juntos produziu reformas de grande impacto, como a nova legislação trabalhista, o teto de gastos e a Lei das Estatais, além de terem dado início à reforma da Previdência.
“Ele foi fundamental na negociação das reformas por sua capacidade de ouvir, de oferecer sugestões e também por sua firmeza,” escreve Meirelles.
O lançamento e a noite de autógrafos acontecem hoje a partir das 18h na livraria Travessa do Shopping Iguatemi.
Abaixo, um excerto do capítulo escrito por Ana Carla Abrão e Pedro Malan, em que os economistas tratam dos desafios fiscais para os próximos anos.
As três perguntas de Blanchard sobre a dívida pública
Olivier Blanchard formula três perguntas que nos ajudam a motivar o debate fiscal no Brasil. A primeira delas se refere ao aumento da dívida pública. Quando isso constituiria realmente um problema? A segunda levanta a seguinte dúvida sobre o novo “consenso fiscal” – pós-2008 e pós-Covid – nas economias avançadas: esse conceito “viaja bem” para os países ditos emergentes? Finalmente, Blanchard pergunta: se, no caso mais simples, a taxa de crescimento da economia (g) fosse igual à taxa de juros relevante para o serviço da dívida (r), isto é, r-g = 0, o problema da dívida se resolveria naturalmente com o tempo? Segue um breve comentário sobre cada pergunta.
A primeira das três perguntas foi formulada em janeiro de 2019. A resposta não exige que se entre em discussões acadêmicas sobre modelos de gerações superpostas aplicados a sistemas previdenciários de repartição e suas extensões para custos fiscais e welfare costs da dívida pública. Se a taxa de juros da dívida for menor do que a taxa de crescimento da economia, a relação entre a dívida e o PIB irá decrescer, se o déficit fiscal primário (que exclui o serviço da dívida) estiver eliminado.
O resultado é trivial – dadas as premissas –, independentemente da magnitude dos déficits, da extensão do período em que há déficits e do tamanho da dívida em relação ao PIB. Blanchard mostra na parte empírica do seu relevante trabalho acadêmico que, desde o início do século XIX, a taxa de crescimento real da economia americana foi sistematicamente superior à taxa de juro real da dívida pública. Ele deixa em aberto, porém, a questão das expectativas dos investidores em papéis da dívida pública – e seus efeitos sobre prêmios de risco – quando as premissas acima descritas não estivessem sendo cumpridas.
Blanchard voltou ao tema fiscal em duas outras ocasiões. A primeira, em junho de 2021, quando publicou (com Josh Felman e Arvind Subramanian) artigo com o título-pergunta: “O novo consenso fiscal nas economias avançadas viaja para os mercados emergentes?” Outras três perguntas surgem: A situação macroeconômica é a mesma? Existe mais incerteza sobre os resultados fiscais? Existe mais incerteza sobre o diferencial entre a taxa de juros e a taxa de crescimento da economia? As respostas foram não, sim e sim, após a análise de dados relevantes de Índia, Brasil, Indonésia, África do Sul e Turquia.
Vale dizer que as situações não são as mesmas e que as duas incertezas são muito maiores em mercados emergentes do que em países mais avançados. Estes podem se permitir um “whatever it takes” que mercados emergentes dificilmente poderiam manter, exceto em situações de extraordinária e temporária emergência. O então presidente do Banco Central do Brasil, Roberto Campos Neto, afirmou, em setembro de 2021, que o BCB faria “o que fosse necessário”, em termos de elevação da taxa básica de juros, para trazer a inflação (que chegara a cerca de 10% no acumulado de 12 meses) para uma trajetória de convergência para a meta. Esse enorme desafio seria ainda maior se não houvesse apoio do lado fiscal; se fosse preciso lidar com outros “whatever it takes”, por parte do resto do governo, do chefe do Executivo e do Congresso Nacional, operando na outra direção, excessivamente preocupados com o resultado das urnas em outubro de 2022.
O mesmo argumento vale para 2026. A terceira e mais recente intervenção de Blanchard é também relevante para a discussão no Brasil de hoje. Em seu blog e em entrevista ao Financial Times responde à seguinte pergunta: “Você faz distinção entre elevadas relações dívida/PIB que são de certa forma inevitáveis, dada a nossa situação política, e uma explosão da dívida – como sabemos quando cruzamos esta linha?”
A resposta de Blanchard: “Esse é realmente o problema. Visualmente, uma é uma curva convexa, que explode; e a outra é uma curva côncava, que converge para algum nível. Em tempo real, como você decide qual deles enfrentará? Penso que se decide com base no que o governo parece estar disposto a fazer em termos da sequência dos déficits primários.”
O caso mais simples, segundo Blanchard, é quando “r” menos “g” é zero, aproximadamente a situação em que ele acredita que estariam os EUA hoje. Nesse caso, bastaria perguntar: existe um plano para efetivamente zerar os déficits primários num tempo finito de forma crível? “É tudo fumaça e espelhos ou medidas reais? Se os governos utilizarem uma taxa de crescimento que não seja realista, se utilizarem uma taxa de juros inferior à taxa de mercado, então saberemos que não estão a falar a sério. Tem que haver medidas que façam o trabalho.”
A incerteza quanto às taxas reais futuras pode levar a taxas mais elevadas hoje. Não se trata de uma hipótese absurda. Há muitas razões para se pensar que há mais incerteza sobre as taxas reais. “Há que decidir se o aumento vai ser transitório ou permanente. O meu palpite é que uma boa parte dessa incerteza vai desaparecer. Mas nem toda, por isso a mensagem do meu blog era: ‘Por favor, tenham planos para uma redução constante dos déficits primários para perto de zero. Lenta, constante, convincente e confiável.’”
No entanto, ainda que a inflação diminua, Blanchard acha que o provável é que as taxas de juros se mantenham mais elevadas na próxima década do que na década que se seguiu à crise financeira de 2008. Essa situação reflete uma série de fatores, incluídos o aumento dos níveis de endividamento, a desglobalização, o aumento das despesas com a defesa, a transição ambiental, as exigências de redistribuição de renda e a inflação persistente. Mesmo as alterações demográficas, frequentemente citadas como justificativas para se baixarem as taxas de juros, podem afetar os países desenvolvidos de forma diferente, visto que eles aumentam em muito as despesas associadas ao crescente envelhecimento da população.