O engenheiro Milton José Mitidieri foi parceiro de Oscar Niemeyer naquela aventura chamada Brasília.
Em 1962, Niemeyer presenteou o amigo com um projeto de uma casa térrea de quase 700 m num terreno de 1.800 m² em Alto de Pinheiros.
A residência Mitidieri “é uma casa simples, diferente e acolhedora. Os quartos ficam apenas 1 metro acima do nível das salas e isso é o suficiente para mantê-las indissociáveis,” Niemeyer escreveu sobre o projeto. “No térreo, localizamos as salas; o salão de jantar rebaixado 1 metro e praticamente no nível da cozinha.(…) O escritório, a peça mais íntima desse setor, fica afastado das salas pela parede curva da biblioteca, e do jardim pelo espelho d’água.”
Visitar um projeto residencial de Niemeyer já seria um programa por si só – imagine agora se a casa estiver recheada de obras espetaculares de Picasso, Calder, Tunga e Maria Martins.
A mostra Aberto/01 colocou esses trabalhos – contemporâneos e modernistas, nacionais e internacionais – nas paredes da casa, onde ficam até 4 de dezembro.
“Foi uma ideia ousada que colocamos de pé em 45 dias,” Filipe Assis, o idealizador do evento, disse ao Brazil Journal. “No começo, as galerias olhavam céticas para mim. Aos poucos o evento foi ganhando força, com apoio de grandes galeristas e importantes colecionadores daqui e de fora.”
Filipe é um art adviser que vive entre Londres e São Paulo. Há alguns anos, teve a ideia de criar um evento que aliasse arquitetura e arte – mas com a pandemia, o projeto ficou na gaveta.
Quando recebeu de um amigo as imagens da casa de Niemeyer no final de agosto, decidiu que era hora de agir. Pegou um voo para São Paulo e foi conversar com a designer Claudia Moreira Salles, a curadora Kiki Mazzucchelli, e Lissa Carmona, a sócia da loja de móveis Etel e diretora da Fundação Niemeyer.
A arquitetura de Niemeyer apresentou um desafio cenográfico para as curadoras, que tiveram que refazer toda a iluminação da casa e criar ferragens específicas para não furar nem as paredes nem a marcenaria original dos anos 70.
Claudia Moreira Salles criou um cavalete especialmente para a mostra, que será lançado em breve pela Etel.
Filipe não teve tempo de conseguir patrocínio e bancou o projeto sozinho. “Foram muitas coincidências boas – tudo foi dando certo, em um ritmo perfeito que permitiu que o projeto acontecesse sem atrasos.”
O belo resultado é fruto do trabalho coordenado entre o idealizador e as curadoras, com o apoio da Fundação Niemeyer. A exposição está dividida em cinco núcleos organizados por temas e ambientes.
Logo na entrada da casa o primeiro núcleo, “Niemeyer”, começa com um retrato do próprio da pintora Panmela Castro, ao lado de Burle Marx, retratado por Maria Klabin, recebem os visitantes, que são encaminhados primeiramente ao escritório – um semicírculo no canto da sala principal.
No escritório estão obras históricas que têm correspondência biográfica ou formal com o arquiteto. No alto, um móbile de Calder paira sobre o centro do ambiente. Perto da janela está Ruínas de Brasília, uma das duas únicas pinturas feitas por Niemeyer – feita em Paris à época do golpe militar de 64 – impressiona pelo tom fúnebre e pesado.
Os núcleos “Abstração Geométrica” (no salão de jantar), “Contemporâneo” (espalhado entre estar, quartos e corredor) e “Jardim” abrigam nomes estrelados como as americanas Carol Bove e Lynda Benglis, e nacionais como Sergio Camargo, Helio Oiticica, Lygia Clark, Cícero Dias, entre muitos outros. A quantidade de artistas renomados e a qualidade das obras é fora do comum.
O ponto alto da mostra está no núcleo “Nus”, que fica na suíte master do casal.
Ali estão reunidos desenhos de nus femininos, assinados por nomes como Renoir, Klimt, Giacometti, Chagall, Botero, Moore e pelas artistas Lee Krasner e Louise Bourgeois. A maior parte dos desenhos em papel pertence a uma colecionadora brasileira, cliente de Filipe, que foca em desenhos de nus femininos em papel.
Apaixonada pelo pintor austríaco Egon Schiele, e na busca por desenhos do artista, a colecionadora foi se interessando por outras obras, e – apesar da ironia de nunca ter achado uma obra de Schiele que amasse no preço certo – montou uma coleção fantástica.
No centro do quarto está o grande destaque do evento: a tela Mulher Nua Sentada, um Picasso de 1901. A tela foi feita nos primeiros anos do espanhol em Paris, e participou das primeiras exposições do artista na França.
Mulher Nua pertenceu a colecionadores importantes até ser confiscada pelos nazistas nos anos 30, e posteriormente foi alvo de uma intensa disputa judicial. Hoje pertence a uma colecionadora portuguesa, outra cliente de Filipe. Uma ironia fina ter mulheres colecionadoras como as grandes compradoras dessas obras em que as mulheres eram o objeto retratado…
Curioso que a casa, apesar de sua singularidade e importância, não é tombada. Abri-la ao público pode estimular a reflexão sobre a necessidade de preservação do patrimônio em um bairro residencial que já abrigou casas modernistas importantes – mas que vêm sendo derrubadas ou reformadas inteiramente uma a uma.
“O Brasil foi grande quando buscou valorizar a identidade genuinamente brasileira,” disse Lissa Carmona. “Estas residências são frutos deste período áureo que precisamos resgatar, recontar esta história e sobretudo preservar.”
Foto da casa: Ding Musa