LE MANS, França — “Paris é uma festa,” Ernest Hemingway famosamente proclamou em suas memórias, recordando os gloriosos anos 1920 na capital francesa, onde dividiu saraus (e porres) com Picasso, James Joyce e Gertrude Stein.
Pois naquela mesma época, a uns 200 km da boemia de Montmartre, outra festa germinava. Na década de 20, a indústria automotiva expandia-se vertiginosamente, e com ela a ideia das corridas de carro como esporte.
Na ponta de lança desse movimento estava a França — daí termos como Grand Prix, ou o fato de que FIA — a entidade máxima do automobilismo mundial — é o acrônimo de Fédération Internationale de l’Automobile.
Com as corridas de velocidade ao estilo da F1 moderna (os ditos Grands Prix) já estabelecidas Europa afora, o jornalista Charles Faroux propôs a Georges Durand, um político local da região de La Sarthe, uma ideia original: e se a capital da região sediasse uma corrida premiando não quem termina um certo número de voltas no menor tempo, e sim quem percorresse a maior distância em um tempo pré-estabelecido?
Seria o mais profundo teste de capacidade de durabilidade de um automóvel, afirmou Faroux. Durand concordou.
O ano era 1923, a capital era Le Mans, e a duração proposta era de 24 horas. Nascia assim, 100 anos atrás, a corrida de longa duração mais famosa do mundo: as 24 Horas de Le Mans.
Talvez pelo improvável — e enorme — sucesso conquistado pelo Brasil na Fórmula 1 entre as décadas de 1970 e 2010, os brasileiros fãs de corridas nunca verdadeiramente “abraçaram” Le Mans. Na Europa é diferente: entre os apreciadores de um automobilismo mais raiz, Le Mans tem valor semelhante, ou até maior, que a Fórmula 1.
Junto com o GP de Mônaco e as 500 Milhas de Indianápolis, Le Mans forma a “Tríplice Coroa” — as três corridas mais famosas do mundo, e uma trinca conquistada até hoje apenas pelo inglês Graham Hill.
Nos EUA, o apelo das 24 Horas também está anos-luz à frente do que se vê no Brasil, em grande parte graças à obcecada, quase religiosa missão de Henry Ford II para derrotar a Ferrari na década de 1960 – celebrizada recentemente no filme Ford vs. Ferrari – e ao fanatismo de Steve McQueen pela prova. Tido como o mais caro e estrepitoso fracasso da carreira de McQueen, o filme Le Mans, de 1971, adquiriu status cult nas décadas seguintes.
Por toda essa história, pela marca centenária e por uma recente mudança de regulamento que atraiu um interesse sem precedentes de algumas das maiores montadoras do mundo, as 24 Horas de Le Mans deste ano foram absolutamente “épicas“, atraindo um público recorde de 320 mil pessoas ao Circuit La Sarthe.
Com 13,6 km de extensão (o triplo de Interlagos), a pista mescla um autódromo tradicional com vias públicas fechadas especialmente para a prova.
Para minha sorte, acompanhei tudo de pertinho, sem sequer precisar sair do autódromo em nenhum momento, graças à barraca de glamping — uma abreviação de glamour camping, onde se dorme em tendas numa espécie de aldeia arborizada, mas com toda a estrutura e o glamour que a experiência pede: camas confortáveis, iluminação e champagne — cortesia de um dos patrocinadores da prova.
Na véspera da largada, quase à meia-noite de sexta para sábado, somos convidados para uma macarronada nos boxes da equipe Alpine pelo piloto brasileiro André Negrão (sobrinho do ex-piloto e empresário Xandy Negrão, recentemente falecido). O jantar tardio se explica: com três pilotos se revezando ao volante de cada carro, cada um entra em um “fuso” diferente ao longo do final de semana.
“Sou mais reconhecido na França do que no Brasil,” admite Negrão, piloto oficial da Alpine, a subsidiária de esportivos da Renault. O campinense é bicampeão (2018/2019) das 24 Horas na categoria LMP2, a segunda mais importante, logo abaixo dos Hypercars, a principal.
Na edição 2023, os Hypercars foram o centro das atenções. No atual momento do mercado automotivo, em que os grandes conglomerados correm contra o tempo para acelerar o desenvolvimento da tecnologia de motores e baterias elétricas para seus carros de rua, um novo regulamento para 2022, enfatizando a parte elétrica dos motores híbridos, reacendeu o interesse das montadoras por Le Mans como há muito não se via.
Um total de cinco equipes “de fábrica”, bancadas por gigantes da indústria, disputam a vitória no centenário: Toyota (atual pentacampeã), Peugeot (vencedora pela última vez em 2009), Cadillac e as lendárias Porsche e Ferrari, respectivamente primeira e terceira maiores vencedoras da história da prova.
A BMW e a própria Alpine de Negrão também já confirmaram participação entre os Hypercars para 2024, trazendo o total de grandes marcas envolvidas para sete — três a mais do que as quatro (Mercedes, Ferrari, Renault e Honda) atualmente investidas na Fórmula 1.
O boom se explica: as novas regras do WEC (World Endurance Championship, ou Campeonato Mundial de Longa Duração, certame do qual as 24 Horas são a joia da coroa) permitem que uma montadora banque uma equipe de ponta para brigar pela vitória em Le Mans por cerca de € 25 milhões, contra € 140 milhões/ano gastos, em média, na F1.
No time da Porsche, o ex-F1 Felipe Nasr é o único brasileiro em reais condições de sonhar com a vitória. Tal como o ouro olímpico no futebol masculino até a Rio 2016, uma vitória no geral em Le Mans segue sendo o “grande título que ainda falta” ao automobilismo brasileiro.
“Simplesmente estar aqui é espetacular,” diz Nasr, que brilhou no treino de classificação colocando o Porsche 963 na quarta colocação do grid, mesmo dando uma única volta voadora. “O traçado de Le Mans é um dos mais recompensadores para um piloto em todo o automobilismo mundial.”
Às 15h de sábado, invadimos o grid – legitimamente, é claro. Ao contrário da elitista F1, Le Mans se notabiliza por permitir que VIPs e jornalistas circulem livremente entre os carros e pilotos no grid de largada, pouco antes do início da prova, às 16h.
É um desfile de celebridades, políticos e milionários, coroado com uma explosão de patriotismo quando as centenas de milhares de fãs entoam A Marselhesa a plenos pulmões, e o verso final coincide com um sobrevoo de caças Mirage sobre a reta dos boxes disparando fumaça azul, vermelha e branca.
Em uma corrida de duração tão longa, é claro que ninguém se propõe a assistir 24 horas ininterruptas de ação na pista.
É aí que a festa de Le Mans realmente começa, com atrações para todos os gostos.
Em um imenso pavilhão, a tradicional RM Sotheby’s promove um leilão de lendas do passado de Le Mans – a Ferrari 121 LM que competiu na edição de 1955 da prova nas mãos de Maurice Trintignant e Harry Schell bate o recorde do dia, sendo arrebatada por € 5,74 milhões.
A hora do tardio pôr-do-sol do verão europeu é quando uma das experiências VIPs mais clássicas de Le Mans atinge o seu pico: nada menos do que 12 helipontos adjacentes, desenhados em um descampado atrás da arquibancada da reta principal, oferecem voos panorâmicos non-stop para os convidados das principais marcas envolvidas no evento. Somente a Motul, a marca francesa de lubrificantes, leva 45 de seus convidados para ver de cima o sol caindo sobre o Circuit La Sarthe.
Quando a noite cai de vez, um palco de música eletrônica atrai cerca de 10 mil pessoas para uma rave que só termina às 4 da manhã, e marcas como a Porsche possuem áreas VIPs estrategicamente colocadas em curvas clássicas, permitindo assistir os carros passando em alta velocidade noite adentro.
Às 16h de domingo, a surpreendente Ferrari 499P guiada por James Calado, Alessandro Pier Guidi e outro ex-F1, Antonio Giovinazzi, recebeu a bandeira quadriculada em primeiro lugar, após 342 voltas completadas.
A façanha do trio quebrou um jejum ferrarista que durava desde 1965 e interrompe a hegemonia da favorita Toyota – à gigante japonesa resta o consolo do vice-campeonato, com o trio formado por Ryo Hirakawa e outros dois ex-F1, Sebastian Buemi e Brandon Hartley, chegando em segundo a apenas 1min20s da Ferrari vencedora.
Para os fãs brasileiros, a semana das 24 Horas traz ainda uma notícia espetacular: após 10 anos de ausência, o WEC confirmou seu retorno ao Brasil em 2024: as 6 Horas de São Paulo, no Autódromo de Interlagos, estão agendadas para 14 de julho do ano que vem.
Cassio Cortes viajou a Le Mans a convite da Motul do Brasil.