Quando Beth Goulart estreou o monólogo Simplesmente Eu, Clarice Lispector em 2009, o mundo era bem diferente.
As redes sociais engatinhavam e ninguém imaginaria que a grande escritora furaria bolhas através de constantes citações de suas obras na internet. “Clarice, que sempre foi tida como difícil, filosófica, é muito melhor compreendida hoje porque foi descoberta de maneira simples e direta,” Beth disse ao Brazil Journal.
O espetáculo ficou em cartaz até 2014, foi aplaudido por 1.200.000 pessoas em 280 cidades e rendeu quatro prêmios à intérprete. Para celebrar cinco décadas de carreira, Beth voltou a colocá-lo no palco em março e lotou as 350 poltronas do Teatro PRIO, no Rio de Janeiro, por um mês e meio.
Uma nova temporada que começou no dia 9, desta vez no Teatro Clara Nunes, com o dobro da capacidade, fez a artista confirmar Clarice Lispector como fenômeno entre os jovens. Para ela, a autora fala sobre a percepção da vida, das relações como transcendência e do poder do cotidiano – questões que, depois de uma pandemia, mexeram com a cabeça de muita gente, ainda mais com os adolescentes prestes a entrar na vida adulta.
“Converso com muitos garotos que vão espontaneamente ou são levados ao teatro pelos pais ou avós e saem interessados nos livros de Clarice, o que só prova que ela ultrapassou o próprio tempo,” diz a atriz. “Muitas destas moças e rapazes, perto dos 20 anos, não tinham idade para ver o espetáculo e agora ampliam o interesse pela literatura.”
Escrito e dirigido por Beth, sob a supervisão de Amir Haddad, o monólogo não teve uma vírgula alterada nos onze anos em que permaneceu engavetado. A dramaturgia foi baseada em depoimentos, entrevistas e cartas da autora, e Beth intercala a representação biográfica com personagens da ficção. São elas Joana e Lori, dos romances Perto do Coração Selvagem e Uma Aprendizagem ou o Livros dos Prazeres, e Ana e a mulher sem nome, dos contos Amor e Perdoando Deus.
“Lendo Clarice você descobre naturalmente a obra, então quis focar na mulher por trás da escritora, com suas vulnerabilidades e angústias,” explica. “Este caminho a aproxima do público e, como teatro é ilusão de ótica, acho que temos uma semelhança física que ajuda a enxergá-la em sua humanidade.”
Tudo é sutil na metamorfose entre a interpretação da criadora e de suas criaturas.
Beth deixa de lado o cigarro tragado por Clarice, muda a entonação de voz – abandonando o sotaque ou a língua presa que marcava a dicção da escritora – e veste ou tira alguma peça do figurino. Pouco importa se quem está em cena é Beth, Clarice ou as personagens, tamanha a sintonia.
Não foi só o público que se renovou.
Aos 64 anos, Beth passou por experiências que reverberam em seu trabalho. A mais significativa foi a perda de seus pais, o ator Paulo Goulart (1933-2014), levado por um câncer, e a atriz Nicette Bruno (1933-2020), uma das vítimas da covid.
“Quando eu falo de morte na pele das personagens, eu vivi aquilo e sei o que significa,” ela me disse. “As perdas de pai e mãe me proporcionaram um amadurecimento e me fortaleceram para proteger meu filho, minha neta e quem estiver ao meu redor.”
Beth conheceu a obra de Clarice na adolescência ao ler Perto do Coração Selvagem; a identificação com os anseios da personagem Joana se deu imediatamente. Interpretar a escritora, porém, fez com que ela alimentasse a vontade de se expressar com as próprias palavras.
Antes de criar a dramaturgia de Simplesmente Eu, Clarice Lispector, Beth havia escrito dois solos que protagonizou no teatro, Pierrot (1991) e Doroteia Minha (2002), mas, recentemente, se descobriu como autora de livros. “Clarice me provocou para investir na escrita e me deu segurança para me aprofundar em mim mesma.”
Em 2020, a atriz publicou Viver é uma Arte: Transformando a Dor em Palavras, um exercício que mistura memórias e relatos profissionais, e, no ano passado, foi a vez de O Que Transforma a Gente? – Breves Reflexões para Mudanças Profundas, uma coletânea de crônicas motivacionais.
“Encontrei realização na solitude da escrita, que é de onde nascem as ideias e se manifestam escolhas mais íntimas,” disse a atriz que pariu a escritora.
O palco sempre vai ser o seu lugar, garante ela, mas quem sabe, depois do mergulho em Clarice, Beth não explore cada vez mais a liberdade para falar de temas que nascem da sua individualidade e reflitam em públicos de diferentes perfis e idades.
Uma próxima escritora para levar à cena? “Quem sabe Cora Coralina?”