O Senado do México aprovou hoje de madrugada a (para lá de controversa) reforma do Judiciário – colocando o país numa rota de deterioração institucional que já vem minando a sua economia.

Quando a nova legislação entrar em vigor, a maioria dos juízes – incluindo os da Suprema Corte – será eleita pelo voto direto e popular, potencialmente arruinando a independência do Judiciário. É algo inédito em um país de relevância política e econômica global como o México. Apenas a Bolívia tem algo parecido.

Os quase 1.700 juízes e magistrados dos tribunais superiores serão substituídos por novos, escolhidos pelos eleitores. A primeira rodada será em 2025; uma segunda ocorrerá em 2027.

O número de ministros do Supremo será reduzido de onze para nove, e seus mandatos serão de no máximo doze anos. Cairá o limite de 35 anos de idade para os ocupantes da mais alta Corte do país.

Andres Manuel Lopez Obrador

A reforma é o capítulo final da escalada populista do presidente Andrés Manuel López Obrador, mais conhecido como AMLO, em seu último mês de governo.

Ontem, antes da votação, houve grandes protestos contrários à reforma – e os manifestantes chegaram a invadir o Senado.   

Mas a medida alcançou a maioria qualificada, obtendo 86 votos a favor e 41 contra. A reforma já havia sido aprovada na Câmara.

“Consideramos que as reformas constitucionais do México deverão enfraquecer o arcabouço institucional e a economia,” disse hoje o time de macro para América Latina do Citi.

Os ativos mexicanos vêm sofrendo há alguns dias sob o impacto dessa reforma. Era já prevista a aprovação – e hoje a reação foi neutra. “O sentimento negativo talvez já tenha atingido seu ápice,” disse o Citi.

O Supremo vinha barrando algumas políticas e reformas defendidas por AMLO e seu partido, o Movimento de Regeneração Nacional (Morena). O presidente mexicano então iniciou uma campanha para reformar o próprio sistema judiciário – e ganhou a oportunidade de fazê-lo ao conquistar recentemente a maioria qualificada no Senado.

As reformas constitucionais atingem diversas áreas – e a transformação do Judiciário é a que mais tem incitado questionamentos e críticas.

Os atuais magistrados poderão se candidatar nas eleições de 2025 e 2027 – e quem não se submeter ao voto popular ficará no cargo até os novos serem escolhidos.

AMLO disse hoje que o México “dará um exemplo ao mundo, porque o Poder Judiciário, está mais que demonstrado, não oferece justiça.”

Para o esquerdista mexicano, “os juízes, com honrosas exceções, estão a serviço de uma pequena minoria que se dedica a saquear o país.”

Norma Piña, a atual presidente do Supremo, disse que a emenda constitucional será a “demolição do Poder Judiciário.”

A reforma complicará as relações do país com seus parceiros da América do Norte em um momento no qual o México havia superado a China como principal exportador para os EUA.

Em uma nota divulgada há duas semanas, o embaixador americano no México, Ken Salazar, disse que “a eleição popular de juízes é um grande risco para a democracia mexicana”, e que qualquer reforma deveria ser no sentido de “fortalecer o Judiciário, e não submetê-lo à corrupção política.”

Salazar é jurista e foi procurador-geral do Colorado, elegendo-se mais tarde para o Senado.

O embaixador afirmou em seu comunicado que a eleição direta de juízes vai “ameaçar a histórica relação comercial que nós construímos – que se baseia na confiança dos investidores no arcabouço legal do México.”

“A eleição direta também vai facilitar que os cartéis e outros maus atores políticos obtenham vantagens sobre juízes com motivações políticas e inexperientes,” disse Salazar.

Ainda segundo o embaixador, é compreensível que o país busque combater a corrupção no Judiciário – mas a reforma “não vai fortalecer o sistema” e poderá “enfraquecer os esforços de integração” da América do Norte.    

A reforma ainda precisa ser aprovada por 17 de 32 assembleias estaduais, algo tido como certo. Em seguida, vai à sanção presidencial.

A agência de classificação de crédito Standard & Poor’s poderá rever a classificação do país, advertiu Joydeep Mukherji, o diretor para análise de risco soberano para América Latina e Caribe.

“O processo institucional de checks and balances assegura transparência a previsibilidade na administração pública. O seu enfraquecimento, por qualquer  motivo, vai se refletir na classificação soberana do México e da Pemex,” disse o analista da S&P num webinar antes da votação final no Senado, informou o jornal El Economista.

A classificação do risco soberano do México está desde 2002 em BBB com viés estável – o segundo rating mais baixo entre as notas consideradas investment grade.

As agências de rating e os bancos aguardam com atenção o Orçamento do próximo ano, que será apresentado em outubro.

“Esperamos uma correção do déficit fiscal, depois da profunda expansão dos gastos deste ano,” disse Mukherji. “Esperamos que o Orçamento apresente uma correção, como se comprometeu a fazer o novo governo. Senão, haverá pressões significativas de baixa na classificação soberana.”

Segundo o analista da S&P, as reformas do judiciário e a deterioração nas contas públicas colocam em risco o investment grade do México.

Os fatores a favor do México, em sua opinião, são a política monetária estável, o câmbio flexível e contas externas com um “perfil muito sólido.”

“Essas são fortalezas que, não vão desaparecer da noite para o dia, dão certa resistência ao grau de investimento,” ponderou.

A principal ‘fortaleza’ da economia mexicana tem sido o forte ingresso de investimentos, com empresas internacionais se posicionado em relação aos riscos geopolíticos na Ásia. Ainda assim, o crescimento do PIB segue em ritmo modesto – estimativas abaixo de 2% para 2024 e 2025.

Claudia Sheinbaum, a escolhida de AMLO para sucedê-lo, ganhou tranquilamente as eleições de junho e terá maioria no Congresso quando assumir em outubro. O Morena e os partidos de coalizão terão 75% da Câmara e 65% do Senado.

A presidente indicou que irá reduzir para 2,5% o déficit nominal do próximo ano, reduzindo pela metade os 5% de déficit previstos para 2024. Assim, a relação/dívida se manteria ao redor de 50%.

(Nota: os números fiscais do México são bem melhores do que os brasileiros; no Brasil, o déficit nominal supera 9% do PIB e a dívida bruta ruma para 80% do PIB.)

Desde a eleição de Sheinbaum, o peso mexicano perdeu cerca de 15% de seu valor na comparação com o dólar.

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