No debate sobre os precatórios e a sustentabilidade do teto de gastos, as saídas fáceis, tais como o parcelamento ou retirada dos precatórios do teto, não enfrentam o problema, não alteram o caráter jurídico da obrigação e nem o seu impacto sobre as contas públicas.

Ao contrário, essas saídas ampliam incertezas e prejudicam a ancoragem das expectativas sobre a trajetória da dívida pública.
 
A solução estrutural é sempre a mais difícil e inconveniente, mas a única capaz de preservar famílias e empresas de importantes perdas decorrentes da depreciação cambial, da alimentação dos choques inflacionários e do aumento de juros. O momento atual, com choques inflacionários com forte disseminação, não seria mais impróprio para soluções improvisadas.
 
Ficou evidente que as despesas com precatórios dobraram em 10 anos (de 0,5% do PIB em 2013 para cerca de 1% do PIB, em 2022). Mas não se pode afirmar que é algo inesperado. Em 2021, a União provisionou no seu balanço patrimonial 3,7% do PIB em causas judiciais com perdas possíveis, somente do lado das despesas. As três ações do Fundef, por exemplo, estimadas em R$ 137,5 bilhões, têm sido provisionadas em valores crescentes desde 2019.
 
Na perspectiva dos órgãos jurídicos, o forte aumento dos precatórios para o próximo ano é resultado de uma ampla digitalização de processos e dos ganhos de eficiência daí decorrentes. Não só acelerou a decisão para ações que foram perdidas, mas também para aquelas em que a União foi vitoriosa.
 
Ademais, no Brasil, tanto empresas quanto governos convivem com elevada litigância. Nas empresas, o risco judicial é impactante e, por isso, conta com governança específica. O não cumprimento ou o cumprimento parcial de ordens judiciais não passam impunes. Tanto o nível de provisões com perdas possíveis quanto a sua realização estão relacionados ao risco mensurado pelo mercado, o que impacta seu custo de financiamento.
 
Por meio da classificação de risco, investidores ou agentes financeiros selecionam as empresas que receberão recursos com menor custo. Em última instância, isso define taxas de retorno e viabilidade econômica de projetos empresariais e do investimento privado agregado na economia. O mesmo acontece com os países. Prejudicar a segurança jurídica ou a sustentabilidade fiscal é aumentar o risco soberano e o custo de financiamento, reduzir o potencial de investimentos viáveis, inviabilizar um conjunto maior de empresas e reduzir o potencial de crescimento da economia.
 
Políticas públicas implicam escolhas nem sempre triviais. O tratamento dessa questão deveria, necessariamente, passar por ações estruturantes:
 
1.      Publicar o diagnóstico sobre as causas que geram perdas judiciais para produzir “vacinas”: redigir de forma “defensiva” leis e normas; incluir órgãos técnicos na conferência de cálculos; fortalecer a cultura de riscos nos órgãos públicos. 
2.      Aprimorar a governança desses riscos, com a atribuição de responsabilidades e linhas de defesa, com gestão coordenada entre a área econômica e jurídica, diálogo permanente e construtivo com os órgãos jurídicos.
3.      Aplicar técnicas estatísticas para monitorar julgamentos (agora, com a inteligência artificial) e traçar uma trajetória mais provável para essas obrigações. Um painel atualizado de “dívidas judiciais passíveis de inclusão nos orçamentos vindouros” seria extremamente útil em termos de previsibilidade e transparência.

Como emergência, o recomendável seria adotar a mediação, com suspensão temporária das obrigações, conforme iniciativa recente da AGU em relação aos precatórios do FUNDEF (aproximadamente R$ 16 bilhões em 2022). 
 
As propostas acima, contudo, não se compatibilizam com o tamanho das expectativas criadas sobre o espaço do teto para 2022. O descasamento entre os índices que indexam o teto e as despesas primárias[1] foi praticamente anulado pela persistência da inflação. Ainda que mediante eventual conciliação nos precatórios do Fundef, com sua suspensão temporária, restaria pouquíssimo ou nenhum espaço para o próximo ano.
 
Uma ideia seria ampliar esse espaço com emendas parlamentares do orçamento impositivo (R$ 18 bilhões aprovados na LDO), além de emendas do relator (R$ 16,8 bilhões em 2021), o que tornaria viável um reforço temporário, dentro do teto de gastos, no Bolsa Família. Pouco se sabe sobre o caráter permanente do gasto mais elevado com precatórios, mas muito se sabe sobre o aumento da vulnerabilidade social após a pandemia.
 
No entanto, não são tais saídas que estão postas na discussão pública e, sim, postergar o pagamento de R$ 33 bilhões de precatórios de maior valor, criando nova vinculação de receitas, alocadas em mais um fundo contábil, para abatimento discricionário dos valores acumulados. Uma segunda linha vai na direção da exclusão total dos precatórios do teto de gastos, recalculando o limite desde a sua base.
 
Ambas as propostas abririam espaço no teto de gastos a partir do próximo ano, sancionariam a criação de novas despesas permanentes sem enfrentar a imprevisibilidade com precatórios. De um ou de outro jeito, aumenta-se a dívida pública e a incerteza pelo precedente de se retirar despesas “inconvenientes” do teto. Alimenta a inflação, o aumento dos juros e retarda, ainda mais, a recuperação dos empregos e da renda.
 
Há uma oportunidade real para que as lideranças brasileiras façam a diferença e trabalhem pela responsabilidade fiscal, comprovando sua convicção sobre seus inúmeros benefícios sociais, especialmente para os mais pobres. 

Além de enfrentar estruturalmente a despesa com precatórios, deixando intacto o teto de gastos, seria importante aproveitar os bônus – transitórios e incertos – do atual ciclo de commodities para reduzir a dívida pública contratada durante a pandemia.
 
Seria a forma mais transparente e responsável de defender empregos, renda e a segurança jurídica dos brasileiros.

Ana Paula Vescovi é economista-chefe do Santander.

 
[1] O Espaço do teto de gastos é atualizado pela inflação medida pelo IPCA acumulado entre julho do ano anterior até junho do ano de envio do Projeto de Lei Orçamentária ao Congresso. As despesas indexadas pela inflação são atualizadas pelo INPC acumulado em 12 meses até o final do ano.