Em 1899, o escritor norte-americano Elbert Hubbard publica um curto ensaio no periódico The Philistine, de pequena circulação. O texto cuida de um episódio da guerra entre Espanha e Estados Unidos, ocorrida um ano antes em decorrência da intervenção americana no movimento de independência de Cuba, até então uma colônia espanhola. 

O conflito durou apenas dez semanas e teve um desfecho favorável aos americanos, que, assinando o Tratado de Paris, passaram a ter certo controle sobre Cuba, além de terem recebido, por cessão, Porto Rico e Guam.

Ocorreu que, no meio da contenda, era fundamental aos norte-americanos se comunicarem com o líder dos insurretos, o general Calixto Garcia, cujo paradeiro se ignorava. 

Garcia estava escondido em algum lugar do sertão cubano, e naquele momento crítico não era possível lhe enviar uma mensagem por correio. Era necessário mandar alguém para Cuba para encontrar o general insurgente. Uma missão dificílima, contudo considerada essencial pelo Presidente William McKinley. 

Foi então que alguém – o texto de Hubbard não identifica quem – sugeriu a McKinley que contatasse um oficial chamado S. Rowan, o homem apropriado para a árdua tarefa.

O presidente norte-americano simplesmente deu a ordem a Rowan, entregando-lhe a carta que deveria chegar às mãos de Garcia. Uma ordem simples e direta. 

O presidente não ofereceu qualquer outra explicação ou esclarecimento. O oficial, sem nada questionar, guardou a carta em seu próprio peito e seguiu para Cuba. Rowan não perguntou sequer onde Garcia estaria, muito menos quis saber o conteúdo da missiva.

Cruzando o mar numa embarcação rústica, Rowan desembarcou em Cuba numa noite escura. Sem chamar atenção, cruzou o país em guerra até encontrar o esconderijo do general Garcia, a quem entregou a carta. Missão cumprida. A transferência das informações foi crucial para o êxito norte-americano.

No trabalho de Hubbard, Rowan é exaltado como uma pessoa determinada, resiliente, cumpridora de seus deveres. O mensageiro era o paradigma. 

“Não é sabedoria livresca que a juventude precisa, nem de instrução sobre isso ou aquilo. Precisa, sim, de um endurecimento nas vértebras, para poder mostrar-se altiva no exercício de um cargo; para dar conta do recado; para, em suma, levar uma mensagem a Garcia,” pontificou Hubbard.  

O texto se transformou num fenômeno. O episódio, com aura de fábula, era reiteradamente repetido, adotado como referência de comportamento. Uma exaltação à virtude da obediência.

Em 1913, no novo prefácio à obra feito pelo próprio autor, informa-se que o ensaio fora traduzido para diversas línguas e atingido tiragem de mais de 40 milhões de exemplares – isso em 1913!

Muito se discute acerca da acuidade histórica dos dados contidos no trabalho original de Hubbard – e, até mesmo, acerca da referência jactante feita por ele acerca dos milhões de exemplares vendidos de sua obra. 

Não se disputa, contudo, que a história ganhou extraordinária fama. A expressão “enviar uma mensagem a Garcia” tornou-se conhecida: significa aceitar, de forma irresignada e sem questionamentos, uma missão difícil e adotar todos os esforços para cumpri-la. O oficial Rowan e seu propósito ferrenho de cumprir os deveres apresentados a ele tornaram-se um paradigma. 

O mundo girou. Hoje vivemos o tempo das indagações. Vale, então, a pergunta: a conduta de Rowan segue servindo de modelo nos nossos dias? O enaltecimento de quem cumpre uma missão sem questionamentos convém à atualidade? Rowan é um herói ou uma referência ultrapassada?

Não custa lembrar que entre 1899, data da publicação do texto de Hubbard, e os nossos dias, deu-se o julgamento de Nuremberg, no qual a defesa dos oficiais nazistas que cometeram as mais sórdidas atrocidades, se centrava no fato, verdadeiro, de que eles cumpriam ordens de seus superiores. A defesa não vingou. 

Cumprir ordens absurdas e desumanas não absolve, muito menos faz alguém herói. Mudou o paradigma: se a ordem é disparatada, o mérito está em questioná-la e, no limite, recursar seu cumprimento.

Antígona, personagem icônica da peça clássica do grego Sófocles, com seus 2.500 anos de idade, pode ser considerada o contraponto ao oficial que levou a mensagem a Garcia. 

Isso porque Antígona, na peça que tem seu nome, não aceita a ordem de Creonte, seu tio, senhor de Tebas, que proibiu o sepultamento de Polinices, irmão dela. Antígona não se conforma com a regra, que considera desumana. A heroína viola o édito e enterra o irmão. Assume, corajosamente, sua conduta, explicando os motivos de sua irresignação. Sofre a pena, morrendo emparedada. Antígona, desde então, serve de exemplo de compromisso com a consciência e de luta pela justiça.

Numa sociedade dominada por tiranos, na qual se deseje evitar o debate, certamente o oficial da história de Hubbard funciona como modelo. Contudo, se se estimula o espírito crítico, a troca de opiniões e a liberdade de expressão, é razoável – e até mesmo saudável – que se controverta uma ordem. Como ensinou Miguel de Unamuno, “fé sem dúvida é fé morta”. 

Para que a fé se agigante e ganhe consistência, ela precisa ser questionada. Do contrário, ela perde o vigor. As melhores regras são aquelas que, mesmo disputadas, revelam sua força pela razão e, assim, ganham legitimidade para prevalecer.

Franz Xaver Kappus tinha 19 anos e desejava tornar-se poeta (como muitos nessa idade). Como é natural, alimentava dúvidas de toda ordem, a começar pelo resplendor de seu talento. 

Em 1902, ele envia uma carta ao consagrado poeta Rainer Maria Rilke, anexando alguns de seus trabalhos. Desejava receber críticas. Pedia orientações. Em fevereiro de 1903, Rilke responde ao jovem. Eram apenas quatro anos depois da publicação do texto de Hubbard.

Ao todo, foram dez cartas escritas pelo poeta a Kappus. Em 1929, três anos após a morte de Rilke, essas missivas foram compiladas para formar um livro: Cartas a um jovem poeta.

Como explica Cecília Meireles ao introduzir a obra, “as respostas de Rilke não oferecem a Kappus uma receita literária, embora digam coisas essenciais sobre o exercício da literatura. Vão mais longe: tratam da formação humana, base de toda criação artística.”

Uma das pérolas contidas nesse pequeno livro é a recomendação de Rilke ao jovem: cultive as dúvidas, pois as dúvidas ensinam. Eis a lição do poeta: questione, reflita, pense.

No mundo pós-guerra, ainda aprendendo a conviver com a revolução tecnológica, melhor que as pessoas se posicionem, tenham uma opinião. Numa sociedade sadia, se alguém solicita ou mesmo ordena que uma mensagem seja entregue a Garcia, cabe indagar: quem é Garcia? Qual a mensagem? Qual o sentido da missão? 

Novos tempos exigem novos modelos de herói. Quem melhor se adequa aos valores de hoje: o submisso cego e resignado, ou o questionador (que quer encontrar algum sentido para suas ações)? Buscar compreender as regras não significa rebeldia – ao contrário, representa responsabilidade.

José Roberto de Castro Neves é sócio do Ferro, Castro Neves, Daltro & Gomide Advogados (FCDG).