A decisão judicial da Operação Carne Fraca tem 353 páginas, mas o que emerge delas é uma notícia muito velha: a burocracia brasileira continua sendo um balcão de negócios — ativa ou passiva, dependendo do personagem — e alguns empresários preferem encontrar atalhos a ter que percorrer nossa via-crúcis regulatória.
A leitura das acusações e dos grampos feitos pela PF é uma lição de como o Brasil SA interage com o Estado: os mil carimbos necessários para se levantar uma parede, as nomeações políticas que infestam a máquina pública e a confusão atávica entre o público e o privado sobre a qual o sociólogo Roberto da Matta sempre nos ensinou.
Uma das personagens centrais da trama é Maria do Rocio, a chefe do Serviço de Inspeção de Produto de Origem Animal do Ministério da Agricultura no Paraná.
Certo dia, Maria convidou o jovem Daniel Teixeira para a função de chefe substituto, reportando-se a ela. Alojado no cargo, Daniel descobriu que era comum fiscais serem transferidos sem motivo — exceto, claro, para agradar as próprias empresas fiscalizadas. Um dia, Daniel brigou com Maria, ela o demitiu e o mandou fiscalizar suínos a 70km de distância dela.
No novo cargo, Daniel começou a ouvir relatos sobre práticas, digamos, heterodoxas nos frigoríficos. Alguns de seus relatos são de embrulhar o estômago, mas a maioria embrulha o espírito cívico mesmo: a grana era a gordura que lubrificava as relações entre fiscais e fiscalizados (além de um toucinho, vez ou outra).
A PF puxou o fio da meada e descobriu que Maria tinha um chefe, ainda mais vilão que ela: Daniel Gonçalves Filho, então o superintendente do Ministério da Agricultura no estado. A PF diz que ele é “o líder da organização criminosa que contamina a Superintendência Federal de Agricultura no Paraná.”
Funcionário público, Daniel está misteriosamente bem de vida. Segundo a PF, a lista de seus bens (muitos em nome de terceiros) inclui: um apartamento; uma propriedade rural; outro apartamento; um sobrado; outro apartamento; terrenos, e por aí vai. Ele teria, ainda, “veículos com valor de mercado incompatíveis com seus rendimentos,” como uma BMW 320i, um Ford Fusion e um Subaru Forester, “todos pagos à vista”, bem como participação em diversas empresas de Maringá.
Menos engenhosa, Maria do Rocio tinha por hábito receber uma carne aqui, um presente ali, e, why not?, dinheiro das empresas que fiscalizava. A PF filmou um funcionário da JBS entregando uma caixa de isopor, supostamente contendo carne, na casa da funcionária pública.
Mas como Maria não escolhe sua carne pela marca, ela viajou a trabalho à Europa em 2011 com as despesas pagas pela BRF. Não era uma viagem a passeio. O objetivo da viagem ilumina, mais uma vez, a influência da burocracia na vida empresarial brasileira.
Em depoimento à PF em 2015, Maria do Rocio disse que “a viagem era para ter conhecimento da tecnologia de abates de aves numa velocidade acima de 10.000 aves/hora em uma linha de abate.” A BRF pagou as passagens aéreas e hospedagem para ela e um colega, o fiscal Eduardo Luiz Zgoda, que “era e ainda é o responsável pela fiscalização do equipamento onde seria aplicada essa tecnologia.”
Agora vejam como o progresso não acontece apenas no Sillicon Valley. Maria disse à PF que, “antes da viagem, o Ministério da Agricultura não permitia a velocidade de abate acima de 10.000 aves/hora, [mas] depois da viagem, a declarante defendeu a possibilidade dessa velocidade, desde que fosse feito de acordo com as especificações técnicas.” Com base na opinião da agora-viajada Maria, o Ministério autorizou o aumento da velocidade de abate na BRF para 12.000 aves/hora.”
Confesso ser uma vaca quando se trata de frangos e velocidades de abate, mas pergunto: é preciso que um fiscal ‘aprove’ algo tão simples quanto uma máquina que abate 20% mais frangos por hora?
E que tal o dilema da empresa? Para ter a máquina, a BRF precisava do carimbo, e para ter o carimbo, a fiscal tinha que viajar, mas o Ministério não tinha dinheiro. Como faz?
Outro personagem da trama é o gerente de relações institucionais da BRF, Roney Nogueira dos Santos, que foi gravado fazendo as tais ‘relações institucionais’, Brazilian style.
[Descrição do trabalho de Roney num país como o Brasil: amaciar a burocracia para evitar prejuízos à sua empresa ou para viabilizar novos investimentos. Simples assim. Perigoso assim.]
Depois de uma inspeção, a planta da BRF em Mineiros, uma pacata cidade goiana, corria o risco de ser fechada. Roney ligou para o chefe do serviço de inspeção de Goiás, Dinis Lourenço da Silva. A conversa começa formal, com o executivo chamando o funcionário público de ‘doutor’. Roney pede a Dinis que a fábrica não seja fechada, e que conceda à BRF tempo para corrigir as falhas que os fiscais haviam apontado. Dinis mostra boa vontade e diz que nada vai acontecer até uma reunião entre eles dentro de alguns dias.
Neste ínterim, Roney liga para Francisco Carlos de Assis, antecessor de Dinis e seu velho conhecido, e pede que ele interceda junto a Dinis, sugerindo o seguinte discurso: “o Roney sempre foi meu parceiro e tal. E se ele precisar de ajuda em outro lado, como eu sempre te ajudei, eu tô firme.” (Página 255 da Decisão Judicial). O ex-superintendente da inspeção concorda de bom grado, e, como isso aqui é Brasil, ainda pede, “Ô, fala pro Ivan mandar uns frangos pra mim. Umas coisas pra mim, aqui pra casa.” O lobby funciona, e a fábrica é apenas suspensa por 15 dias, um resultado comemorado pelos executivos da empresa.
As gravações mostram que a BRF foi flagrada naquela fronteira decisória — tênue e cinzenta — que depende exclusivamente da liberalidade do fiscal: uma situação já vivenciada por 99,99% dos micro, médio e grandes empresários brasileiros. Entre o fechamento da fábrica e a mera suspensão de sua licença, o executivo da BRF pediu ajuda, foi sedutor e se propôs a ajudar.
Em outro trecho, a própria Decisão Judicial afirma: “Pelo teor do diálogo com a funcionária Carol, percebe-se que a empresa BRF costuma ser achacada também por outros órgãos públicos para a liberação de documentos. (Página 265). Na gravação, a funcionária Carol diz a alguém: “Sabe que a gente tá… Que a prefeitura tá cobrando propina pra liberar o alvará de funcionamento e eu tô numa briga dos infernos lá?” (Não fica clara a cidade onde o achaque ocorre, mas você sabe que pode ser qualquer uma.)
Como Roney havia sido solícito, um dia a conta chegou. Dinis, o chefe da inspeção, pediu ajuda para a reeleição do deputado que é seu padrinho. Conversando com André Baldissera, um diretor na BRF, Roney comenta: “Ele pediu pra gente R$ 300 mil para ajudar o cara que mantém ele lá em Goiânia.”
André: “Putz, aí é foda.”
Roney: “Aí não dá, né? Eu não tenho.”
Mas num sinal de que o Brasil talvez esteja mesmo mudando, Roney diz: “Se a lei não tivesse mudado, a gente conseguiria. A gente sempre fez doação de campanha. Agora não tem nem como, né? Com a Flávia Ribas [do jurídico da BRF] aí no pé de todo mundo… Não dá.”