Ruas inteiras cederam um metro, metro e meio, vergando sob a força das águas que se abateram sobre Belo Horizonte já faz duas semanas.

Muitos bairros da capital parecem ter passado por um terremoto. Ainda há mais de 400 desabrigados e desalojados, e uma infraestrutura em pedaços.

Mas na Câmara Municipal, os representantes do povo focaram esta semana nas reais prioridades do belorizontino: uma moção de repúdio ao Porta dos Fundos por seu programa especial de Natal.  

 
Uma “polêmica” velha de dois meses, uma moção que não põe comida na mesa de ninguém, mas que permite aos ilustres vereadores defenderem a imagem de Jesus, como se ela precisasse de defesa. 
 
Pelo jeito, a vergonha na cara da vereança também foi levada pela enchente, e é hora de discutir para que servem mesmo as Câmaras municipais.
 
No final, apenas cinco dos 41 vereadores foram contrários à moção populista.  Um deles foi Gabriel Azevedo, hoje sem partido.  
 
Ele fez o discurso abaixo, que julgamos digno de nota. 

“Estou profundamente envergonhado com o que está se passando agora na Câmara Municipal de Belo Horizonte. Eu sou fã do grupo Porta dos Fundos. Eu tenho amigos no grupo Porta dos Fundos. E, ao contrário de muitos que aqui se manifestaram, não sou um vereador do bloco da esquerda.

Mas eu sou um liberal que defende a liberdade por inteiro. Talvez seja o único vereador que não é da esquerda e que votará contra esta moção. Pensem vocês, cidadãos de Belo Horizonte, pensem vocês: a cidade foi desmanchada por chuvas. Quantas prioridades existem na capital mineira antes de discutir um vídeo de humor? Quantas?

Esta é uma questão pacificada. Toda a gritaria que foi gerada pelo especial de Natal do Porta dos Fundos conseguiu chegar ao Supremo Tribunal Federal. E ainda bem que ainda há juízes no Brasil que conhecem a Constituição da República Federativa do Brasil. Ainda há.

E não é difícil, caros colegas que aqui estão, a quem peço muita atenção, não é difícil ler o artigo 5º da nossa Constituição. Não é difícil entender Direito. Não é difícil entender liberdade de expressão. Mais ridículo do que ver a Câmara Municipal de Belo Horizonte discutir uma moção de repúdio a um grupo de comédia, aliás, usurpando do comediante esse papel de fazer as pessoas rirem, mais ridículo porque nesse plenário há uma bandeira de Minas Gerais e todo mundo aqui sabe o que está escrito nela.

É latim: libertas quae sera tamen! Liberdade ainda que tardia!

O nosso compromisso, como alguém que tomou posse como vereador jurando cumprir a Constituição, é não afrontá-la. É colocá-la acima das nossas crenças. 

Este é um estado laico. Há aqui um crucifixo no plenário. Ele representa uma fé. Eu respeito esta fé. Eu respeito esta fé. Eu respeito as pessoas que creem. Eu respeito as pessoas que se inspiram na história de Jesus Cristo. É a maioria no Brasil. 

Agora, quantos crimes, quantas tolices, quantos erros já foram cometidos em nome de Jesus? Isso eu não posso concordar.  Eu quero aqui sugerir aos meus colegas vereadores, e sugerir francamente, pois estamos aqui num debate honesto, num debate respeitoso, um autor chamado Baruch de Espinosa. Alguém aqui no plenário já leu Baruch de Espinosa? Não. Ele não viveu no século 19.

Alguém já leu? Eu recomendo profundamente um livro de 1670, chamado “Tratado teológico-político”. Espinosa era profundamente religioso, acreditava piamente em Deus. 

E contou para o mundo, depois de dois milênios do desaparecimento da democracia, que o principal fim do Estado é a defesa da liberdade.

Lamentavelmente, algumas pessoas extremamente religiosas o apedrejaram, o expulsaram da congregação religiosa da qual ele fazia parte, e hoje, séculos depois, muita gente viu que obviamente a razão estava com ele. 

No futuro, quando alguém se perguntar como e quando, no ano de 2020, 41 vereadores num plenário, diante de uma tragédia que a cidade vivia, passaram a discutir a censura, porque não há outro nome, a um grupo de humor, eu quero aqui registrar que eu estava e estou do lado certo da história, do lado da liberdade.”