Sete anos atrás, em 9 de abril de 2017, o mundo da gastronomia foi atingido por um terremoto de grandes proporções. Naquela data, o crítico do The Guardian, Jay Rayner, publicou um texto devastador, demolidor – mau mesmo – sobre o Le Cinq, um restaurante parisiense com três estrelas Michelin e uma das casas mais prestigiosas da capital francesa e do mundo.

O texto teve repercussão global. Foi recebido por muitos como um ataque anglo-saxão a uma instituição sagrada da França. “Em termos de custo e expectativa, o Le Cinq proporcionou de longe a pior experiência em restaurante que tive nos meus 18 anos neste trabalho,” detonou Rayner. 

“Só há uma coisa pior do que lhe servirem uma refeição terrível: ser servido por garçons sérios que não têm ideia de quão horríveis são as coisas que estão fazendo com você,” complementou. 

As respostas francesas a Rayner vieram neste tom: “Isso não é crítica, é entretenimento. É muito excessiva exatamente para fazer você rir. Os leitores do Guardian gostam do ‘rich bashing’. Ele mirou um chef francês com um discurso engraçado e eficaz para essa retórica anti-ricos. É também uma lógica inglesa versus os pretensiosos franceses comedores de rã,” disse um amigo do chef do Le Cinq, Christian Le Squer, ao jornal francês Libération.

Mas rivalidades nacionais e preferências gastronômicas à parte, o texto de Rayner reflete uma questão provocativa que vem gerando debate: será que o modelo tradicional de restaurante de haute cuisine com estrelas Michelin e preços astronômicos está em crise?

A questão ganhou força há alguns anos com o fechamento de dois dos maiores fenômenos da gastronomia mundial: o El Bulli, do chef catalão Ferrán Adriá, em 2011, e o Noma, do dinamarquês René Redzepi, programado para o fim deste ano.

Ambos tinham três estrelas Michelin, lideraram rankings de melhor restaurante do mundo, fizeram história por seus menus inovadores e alçaram seus chefs ao status de celebridade global. E sempre foram caros, muito caros.

Muito se especulou sobre as razões para o fechamento desses dois ícones, como também de casas estreladas no Brasil.

Em 2017, a chef Roberta Sudbrack fechou seu aclamado restaurante epônimo, com uma estrela Michelin, no Rio.  Roberta falou publicamente sobre seu cansaço em relação ao modelo de menus degustação e, tempos depois, optou por uma cozinha mais caseira e intimista com seu Sud, o Pássaro Verde

Outra surpresa foi o encerramento, também no Rio, do Olympe, a antiga flagship da constelação de restaurantes do chef Claude Troisgros. Com uma estrela, a casa marcou a alta gastronomia carioca por 40 anos. Pós-pandemia, Troisgros e seu filho Thomas decidiram focar em outras marcas do grupo, que se expandiu para São Paulo. 

Em março deste ano, foi a vez do chef Eric Frechon anunciar que está deixando a cozinha do parisiense Épicure, o três estrelas do Hotel Bristol. Frechon comandou as panelas do Épicure durante 25 anos e, em sua carta de despedida, citou razões familiares e a vontade de desenvolver seu grupo de restaurantes como os motivadores de sua decisão.

Um questionamento neste debate é sobre a viabilidade de restaurantes tão caros, exclusivos e intensivos em mão-de-obra (em alguns deles, como o Épicure, chega a parecer que há mais garçons do que clientes no salão), mesmo em mercados líquidos como Nova York, Londres ou Paris. Especialmente após a pandemia, será que as pessoas ainda estão interessadas em ostentar tanto?

Para se ter uma ideia do custo de um jantar num desses restaurantes três estrelas, o criticado Le Cinq é um bom exemplo. Imerso num salão majestoso do Four Seasons George V, quem escolher o menu degustação do Le Cinq pagará nada menos do que € 595, cerca de R$ 3.200 – sem os vinhos. Com a harmonização, o jantar para um casal pode tranquilamente superar os € 1.600, ou R$ 8.600.

A alternativa do momento à ostentação e ao luxo dos três estrelas Michelin seriam restaurantes menos pretensiosos, mais simples e, por isso mesmo, mais acessíveis a quem ainda não pode gastar milhares de reais numa única refeição.

Em Paris, por exemplo, diversos bistrôs (muitos com apenas algumas mesas) e seus chefs vêm se destacando na cena gastronômica, gerando mais repercussão do que as casas tradicionais, ainda presas ao modelo de haute cuisine.

Outra questão que surge é o desgaste gerado pela pressão para se manter no topo. 

Muitos restaurantes e chefs não resistem à combinação de alto custo de mão-de-obra, margens apertadas e a necessidade de continuar a permanentemente surpreender clientes exigentes com altas expectativas.

“Hoje o El Bulli não teria sido possível. A internet mudou tanto o ritmo das coisas que o novo se torna velho de um dia para o outro, e isso faz com que as regras do jogo sejam muito diferentes,” Ferrán Adriá disse alguns anos depois de fechar seu restaurante.

Além da pressão criativa, há também a ameaça periódica de perda de posições nos rankings, uma métrica de vaidade para os cozinheiros mas que impacta diretamente no movimento dos restaurantes. Perder uma estrela pode marcar o fim da carreira profissional de um chef.

Repercutiu globalmente, por exemplo, a história do chef francês Bernard Loiseau, que teria cometido suicídio em 2003 por conta das crescentes críticas negativas ao seu restaurante na Borgonha e do medo de deixar de estampar três estrelas Michelin em seu famoso Le Relais Bernard Loiseau. Um dos cozinheiros mais prestigiosos da França, Loiseau não suportou ver a nota de seu restaurante cair de 19 para 17/20 no poderoso guia Gault Millau.

Diz-se que Loiseau teria inclusive inspirado a criação do personagem Auguste Gusteau, do desenho animado Ratatouille. Já o personagem do exigente crítico de gastronomia Anton Ego representaria François Simon, então avaliador de restaurantes do Le Figaro e um dos mais ácidos em relação à queda de qualidade da culinária do chef francês.

Uma consequência de todos esses questionamentos foi o surgimento de rankings alternativos em contraposição aos clássicos Michelin e Gault Millau. 

Iniciativas mais recentes, como o The World’s 50 Best Restaurants ou La Liste, valorizam em grande parte restaurantes mais simples e modernos e que reflitam a cultura de sua região.

No caso do 50 Best, por exemplo, não há nenhum dos clássicos três estrelas parisienses nas 50 primeiras posições do ranking. Em compensação, aparecem ali várias casas de mercados emergentes – do Peru, México e Tailândia – e restaurantes franceses bem mais acessíveis, como o bistrô Septime

Dois destaques: o número 1 da lista global é o peruano Central, enquanto a Casa do Porco aparece na 12ª colocação. 

Outra grande notícia para o Brasil foi a escolha da co-proprietária do Casa do Porco, Janaína Rueda, como melhor chef mulher do mundo pelo 50 Best no último dia 21 de março. Rueda, que também comanda o simpático Bar da Onça, no Centro de São Paulo, é a segunda brasileira a receber o título, depois de Helena Rizzo, do Maní, agraciada em 2014.

Sendo francês, o La Liste é previsivelmente mais eurocêntrico, mas ainda assim oferece espaço para restaurantes de países como Portugal, Eslovênia e Áustria. 

Um dado curioso é que, no ranking do La Liste, o Le Cinq (aquele do menu de R$ 3.200) só aparece na 102ª posição, atrás do nosso Casa do Porco e pouco acima do Maní.

Flávio Ribeiro de Castro ama comer e beber bem.