Entrevistadores da BBC estão acostumados a fazer perguntas duras e sair por cima – mas desta vez, a coisa não saiu conforme o script.
A resposta enfática do presidente da Guiana, Mohamed Irfaan Ali, a um jornalista da TV britânica rodou o mundo nos últimos dias, viralizando nas redes sociais e revigorando o debate sobre os riscos (e a hipocrisia) do colonialismo ambiental.
“Isso lhe dá o direito de nos dar um sermão sobre mudança climática? Eu vou lhe dar um sermão sobre mudança climática,” disse Ali, numa resposta que já entrou para a história.
A entrevista era para o programa HARDtalk, que nutre a saudável prática de fazer entrevistas duras com seus convidados, forçando-os a falar de assuntos desconfortáveis.
O jornalista inglês Stephen Sackur, o host do programa, tem quase quatro décadas de BBC, onde começou como estagiário. Faz ótimas entrevistas, mas às vezes passa um pouco do tom; sua contestação incisiva por vezes escorrega para um pedantismo deselegante.
Sackur foi até Georgetown, a capital da Guiana, entrevistar Ali. O Presidente comentou como o país pretende não ser mais uma vítima da maldição dos recursos naturais, e falou também das ameaças vindas da Venezuela.
A conversa seguia cordial, até que o entrevistador partiu para uma questão mais incisiva tratando do impacto atmosférico da exploração das enormes reservas de petróleo e gás da Guiana, que ganhou velocidade nos últimos anos.
A liberação de carbono do país, segundo Sackur, poderá chegar a 2 bilhões de toneladas. Antes de o jornalista terminar a pergunta, Ali cortou: “Deixe-me interromper você aqui.”
O que se seguiu foi uma dura resposta em que Ali, no lugar de “ouvir o sermão”, passa ele mesmo a fazer um sermão sobre o que chamou de hipocrisia dos europeus.
“Mantivemos nossa floresta viva,” disse o presidente. “Ela armazena 19,5 gigatoneladas de carbono para que você e todo o mundo possam tirar proveito, sem pagar nada por isso. Por que vocês não valorizam o fato de o povo da Guiana ter mantido a floresta viva?”
Ali rebateu as críticas de organizações ambientais e disse que “não será o Greenpeace” que fará os investimentos necessários para o país superar a pobreza.
Os comentários de Ali reverberaram nas redes sociais, com analistas dando razão às suas críticas contra o ‘double standard’ dos europeus. Muitos condenaram a arrogância do entrevistador.
Dois jornalistas veteranos do Financial Times, entretanto, saíram em defesa do jornalista. “Sackur está apenas fazendo o trabalho dele,” disse Gideon Rachman no X (o antigo Twitter). “Se o cara [o presidente da Guiana] respondeu de maneira efetiva, ótimo para ele.”
“Perfeito,” comentou Edward Luce, endossando Rachman. “Foi a provação que incitou a resposta impressionante.”
Já o editor da The Spectator, Fraser Nelson, postou: “É difícil imaginar que o primeiro-ministro da Noruega [outra grande produtora de petróleo] seria questionado da mesma maneira.”
A Guiana foi colônia inglesa até o final dos anos 60. Era uma das nações mais miseráveis do continente, mas agora, graças ao petróleo, tornou-se um dos países de maior crescimento no mundo.
Suas reservas são estimadas em 11 bilhões de barris – uma enormidade para qualquer país, ainda mais para uma nação com pouco mais de 800 mil habitantes.
A seguir, uma transcrição do trecho que viralizou nos últimos dias.
Stephen Sackur – Estima-se que haja petróleo e gás no valor de US$ 150 bilhões, extraídos na costa. Isso significa que, segundo muitos especialistas, mais de 2 bilhões de toneladas de emissões de carbono virão do fundo do mar, dessas reservas, e serão liberadas na atmosfera. Não sei se você, como chefe de estado, foi até a COP em Dubai…
Irfaan Ali – Deixe-me interromper você aqui. Você sabia que a Guiana tem uma floresta totalmente preservada e que ela tem a dimensão da Inglaterra e da Escócia juntas? Uma floresta que armazena 19,5 gigatoneladas de carbono. Uma floresta que mantivemos viva…
Sackur – Isso lhe dá o direito de liberar todo esse carbono?
Ali – Isso lhe dá o direito de nos dar um sermão sobre mudança climática? Eu vou lhe dar um sermão sobre mudança climática. Mantivemos essa floresta viva, que armazena 19,5 gigatoneladas de carbono, para que você e todo o mundo possam tirar proveito, sem pagar nada por isso. Por que vocês não valorizam o fato de o povo da Guiana ter mantido a floresta viva? Temos a menor taxa de desmatamento do mundo. E sabe de uma coisa? Mesmo com o aumento da exploração dos recursos de petróleo e gás, ainda seremos ‘net zero.’ A Guiana ainda terá emissões líquidas zero.
Sackur – Palavras poderosas, senhor Presidente…
Ali – Ainda não terminei! Porque isso é uma hipocrisia que existe no mundo. O mundo, nos últimos 50 anos, perdeu 65% de toda a sua biodiversidade. Mas nós mantivemos a nossa biodiversidade. Vocês estão valorizando isso? Estão prontos a pagar por isso? Ou vocês estão nos bolsos daqueles que destruíram o meio ambiente? Você está no bolso? Você e seu sistema que destruiu o ambiente desde a Revolução Industrial e agora quer nos dar lições?
ENTREVISTA NA ÍNTEGRA