Patrícia Medici fez da anta seu projeto de vida. Há 23 anos, ela lidera um programa de estudo e conservação da anta brasileira – talvez o animal mais injustiçado do país.

Ao contrário do que se diz por aí, a anta não é uma anta.

Estudos do córtex de cérebro do animal revelaram uma imensa quantidade de neurônios. Mas sua grande contribuição como espécie vem do seu aparelho digestivo: as fezes. 

A anta é um mamífero herbívoro que se alimenta basicamente de frutas – pode comer até 8 quilos por dia. Apesar de seu porte, digamos, nada esbelto – as mais parrudas podem pesar até 300 quilos – a anta se desloca por distâncias de até 6 quilômetros, espalhando fezes (com as sementes germinadas) ao longo do percurso. 10727 ca0dbdc7 8fda 5b3f 5a70 71b33998ab85

Diferentemente dos passarinhos, que dispersam sementes pequenas, a anta espalha sementes de árvores de grande porte, o que a torna um importante promotor da biodiversidade. 

Mas nem tudo o que passa pelo estômago da anta é bom para a natureza. Um estudo do Ipê (Instituto de Pesquisas Ecológicas) revelou um preocupante cenário de contaminação por agrotóxicos, incluindo substâncias banidas do país, como o Aldicarb. 

A análise das fezes e do conteúdo estomacal de 116 antas – dispersas num raio de 3 mil quilômetros quadrados no Mato Grosso do Sul – encontrou 13 substâncias tóxicas em 42% dos animais. 

“A anta circula por áreas de produção agrícola de larga escala e está sendo exposta a agrotóxico não pelo consumo, mas pelo contato com solo, água ou mesmo pulverização aérea de defensivos,” diz Patrícia, que coordena o programa de conservação de antas no Ipê. 

Com base nos resultados da pesquisa, ela planeja um novo estudo, desta vez sobre a contaminação das pessoas que vivem na mesma região. “A anta é uma espécie de ‘sentinela’ das matas. Sua contaminação compromete a nossa biodiversidade e serve de alerta para os riscos ao qual nós humanos estamos sujeitos.” 

Patrícia cresceu em um sítio na zona rural de São Bernardo do Campo, no alto da Serra do Mar, cercada de natureza. Foi a primeira da família a entrar para a faculdade. 

10728 465576e2 3a3e 50b4 90cf c70498b33b67Estudou engenharia florestal na Esalq-USP e se mudou para Campo Grande para ficar mais perto das antas. 

Hoje ela coordena o Tapir Specialist Group, uma rede de 130 conservacionistas de antas de 27 países da IUCN, a União Internacional para a Conservação da Natureza, entidade que atesta o grau de risco de extinção dos animais. (Por essa classificação, a anta é um animal “vulnerável”.)

O trabalho com as antas rendeu a Patrícia um dos maiores prêmios de conservação do mundo, da National Geographic Society/Buffett Award, entregue no mês passado em Washington.

Pouco ou quase nada se sabia sobre as antas quando Patrícia decidiu abraçar o animal, no início dos anos 90.

O esforço de conservação vai além da ciência: passa por uma tentativa de melhorar a reputação do animal.

Os primeiros relatos ‘trollando’ a imagem das antas vêm do tempo da colonização. Os portugueses tentaram transformar a anta em animal de carga – mas elas não se deixaram explorar.

“A anta é um bicho selvagem difícil de domesticar. Mas não impossível,” defende Patrícia. “Em zoológicos, elas respondem bem aos cuidados e não precisam ser sedadas para fazer coleta de sangue e análise de saúde. Entram no esquema com facilidade.” 

Há outra explicação digamos, mais moderna. Nos anos 1920, em meio a uma disputa de visões sobre brasilidade e identidade nacional, a anta foi eleita como mascote do “Movimento Verde-Amarelo”. Os poetas Menotti del Picchia e Cassiano Ricardo lideravam o grupo – que ficou conhecido como Escola das Antas. 

No polo oposto, uma outra corrente modernista, liderada por Oswald de Andrade, pregava um nacionalismo diferente, absorvendo e retrabalhando as influências europeias. Em 1927, Oswald atacou os adversários com um artigo sarcástico e “antológico” em sua coluna no Jornal do Commercio. 

Sob o título ‘Antologia’, e recheado de trocadilhos e palavras inventadas com sufixos e prefixos em “anta”, o pai do Movimento Antropofágico tirava onda do que via como o ‘nacionalismo jeca’ da Escola das Antas, cristalizando de uma vez por todas a ideia do animal como xingamento.