O lobby de Edson Bueno pela liberação dos preços dos planos de saúde individuais coloca em lados opostos dois amigos do peito do Governo.

De um lado, representando os interesses da Amil, o próprio Bueno, que se gaba entre amigos de ter contribuído ‘apenas’ para a campanha de Dilma Rousseff enquanto a maioria dos empresários contribuiu para os três principais candidatos. (Bueno e sua ex-mulher, Dulce Pugliese, que juntos construíram a Amil, receberam 6,5 bilhões de reais ao vendê-la em outubro de 2012 para a UnitedHealth.)

10116 a0cbfd45 6004 18d2 0043 8760d9edc6f7Do outro, José Seripieri Filho, o ‘Júnior’, controlador da Qualicorp e amigo fraternal tanto do ex-Presidente Lula quanto de Dilma. (Nos últimos dois anos, Lula passou o Ano Novo na casa de Júnior em Angra dos Reis.)

A notícia do Radar On-line de que Bueno quer convencer o Planalto a liberar os reajustes do planos individuais — bem como declarações subsequentes do ministro da saúde de que o Governo prepara mudanças nos planos — detonaram uma correção de 20% nas ações da Qualicorp nos últimos dias, porque os acionistas temem que uma mudança nas regras prejudique a empresa. (Ontem, a ação se recuperou, reduzindo a queda para 15%.)

Os planos individuais, cujos preços são controlados pelo Governo, são um grande abacaxi para as operadoras e seguradoras de saúde como a Amil e a Bradesco Seguros.

Como a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) não concede reajustes em linha com a chamada ‘inflação médica’ (o custo dos equipamentos e serviços usados nos exames e procedimentos), as operadoras e seguradoras que não oxigenam suas carteiras perdem muito dinheiro nos individuais. A Bradesco Seguros parou de vendê-los há anos, e a Amil, no ano passado.

Entre 2007 e 2013, a ANS concedeu um reajuste acumulado de 61% nos planos individuais, enquanto a variação de custos médico-hospitalares calculada pelas operadoras foi de 120%.

Desde que a UnitedHealth comprou a Amil, já teve que injetar pelo menos 1 bilhão de reais na empresa, em parte para sustentar a carteira deficitária de planos individuais antigos.

Neste ambiente regulatório de preços artificiais (e ainda assim muito caros), a Qualicorp cresceu vendendo os chamados planos coletivos por adesão, também conhecidos como “planos de afinidade”. A empresa negocia com as operadoras e seguradoras um preço “no atacado” em nome de um conjunto de clientes, geralmente uma entidade de classe, como a OAB ou o CREA. Ao dividir com os clientes uma parte das economias de escala, a Qualicorp supriu a lacuna deixada no mercado pelos planos individuais, conquistou 5,2 milhões de vidas e chegou a valer mais de 8 bilhões de reais na Bolsa.

No mercado, os acionistas da Qualicorp temem que o Governo autorize as operadoras de saúde a lançar um plano individual com novas regras, e que este produto roube mercado (ou pressione as margens) da Qualicorp.

Para Maurício Ceschin, ex-presidente da ANS e hoje CEO da Qualicorp, a chance de que isto aconteça é remota, e o debate sobre liberação de preços dos planos individuais é um falso dilema.

“Este é o debate errado, é uma cortina de fumaça que mascara os desafios reais do setor, porque liberar preços é apenas enxugar gelo,” diz Ceschin, que é médico e já foi diretor superintendente do Hospital Sírio Libanês, em São Paulo.

Para ele, o País deveria aproveitar essa oportunidade para discutir o aumento desenfreado dos custos médico-hospitalares que impactam tanto o Sistema Único de Saúde (SUS) quanto os planos de saúde privados — este sim, o ‘desafio real’.

Atacar este problema contribuiria para gerar eficiência no sistema de saúde e na economia. “Se não fizermos mudanças estruturais, daqui a três anos vamos estar aqui discutindo o tema de sempre: qual percentual de reajuste aplicar aos planos de saúde”, diz ele.

Segue a entrevista que Ceschin deu a VEJA Mercados ontem (senta aí porque a conversa é longa):
10329 e169d8f2 9872 0000 0002 f10892766a69
Se as operadoras puderem lançar um plano de saúde, com reajuste livre atrelado ao dos planos de pequenas e médias empresas, esse produto poderia ser competitivo com os planos coletivos por adesão que a Qualicorp oferece?

Esta resposta é um pouco complexa. Depende. Se este novo plano permitisse a rescisão unilateral por parte das operadoras, ele poderia em tese ser precificado mais barato, até como forma de atrair mais clientes num primeiro momento, mas hoje o plano para PME (pequena e micro empresa) já está precificado com as mesmas características que se propõem para este novo produto, portanto o preço deveria ser semelhante ao atual PME.

Mas isto causaria outro problema para as operadoras: uma parcela dos clientes dos planos individuais existentes, principalmente os sadios, migrariam para o novo plano porque ele seria mais barato, o que pioraria ainda mais a sinistralidade da carteira de planos individuais existente.

A parte que, possivelmente, não migraria para os novos planos é aquela mais antiga, cujos preços estão tão defasados que, mesmo diante da nova oferta, ainda seria mais barato ficarem onde estão ou os que estão doentes e em tratamento. No final do dia, a operadora terá uma carteira antiga de usuários ainda mais deficitária do que a que já tem hoje, pois esta carteira envelheceria com uma sinistralidade crescente, agravando o que se pretende corrigir com a mudança.

Se, por outro lado, este novo plano não permitir a rescisão unilateral — o que seria o mais razoável do ponto de vista do Estado na proteção ao consumidor — do ponto de vista atuarial ele nasceria tão ou mais caro do que os planos de pequenas e médias empresas, que permitem às operadoras a rescisão unilateral deste contrato. Em outras palavras, a proibição da rescisão unilateral implicaria em um preço maior para este novo plano PME/individual. Hoje, os planos coletivos por adesão já competem com o PME, com a vantagem de que, no coletivo por adesão, não há a rescisão unilateral individual do contrato, só com a entidade de classe como um todo.

No fim do dia, a sistemática de simplesmente reajustar preços, como há décadas é feito, não resolve o problema do plano individual, não vai gerar mais oferta para beneficiar o consumidor, e vai acabar com as garantias, com a proteção que o consumidor teve até hoje.

Você está dizendo que os ganhos das operadoras com um novo plano (um com a carteira de gente muito mais sadia, e com liberdade para aumentar preço depois— em linha com PMEs) não aliviaria o déficit da carteira antiga?  É isto que você está dizendo?
 
Depende do tamanho da carteira antiga. A operadora teria que vender muitos planos novos para, além de garantir o equilíbrio econômico-financeiro deste novo plano, compensar o déficit do antigos, porque a sinistralidade do antigo, por não receber mais novos entrantes e concentrar aqueles com maior sinistro, vai aí sim crescer muito mais que os  reajustes calculados pelo governo com base nos dados de mercado. De qualquer forma, se existir uma compensação, ela deverá ser um processo de maturação lenta… Não resolveria, de imediato, o problema de ninguém.

Nos últimos dias, a Qualicorp perdeu 1 bilhão de reais em valor de mercado porque os investidores temem que um novo produto aumente a competição. Isso não pode acontecer?

Lançar um novo tipo de plano individual não é uma tarefa tão fácil. Não é só o Governo autorizar que no dia seguinte o produto é automaticamente lançado. Isso vai requerer estudos, inclusive atuariais por parte da ANS. Leva tempo.

Além disso, você tem que lembrar que hoje, no Brasil, há poucas operadoras economicamente sustentáveis, e geralmente são as que tem controladores fortes. E mesmo assim, elas estão tendo prejuízo operacional. Não há condições de alguém lançar um produto e tentar forçar o preço para baixo para — como os investidores temem. As operadoras estão com água até o nariz. A raiz dessa problemática, desse ciclo vicioso, é que a lógica econômica do sistema ainda está focada no aumento da receitas, o que é um erro, e não na gestão médico-assistencial, que conseguiria otimizar, racionalizar e reduzir os custos, ao mesmo tempo aumentando a qualidade desses serviços para o usuário. A lógica é – deveria ser – outra.

A Qualicorp fica com cerca de 12% a 15% de cada apólice que vende. Vocês não são parte do custo?

Mesmo cobrando isso, a Qualicorp ainda consegue ter planos coletivos efetivamente mais baratos do que os individuais, e não raro até que os PMEs. Temos 2,3 mil funcionários diretos, e mais de 400 destes estão em áreas ligadas a inteligência, que abrem o sinistro dos grupos, verificam se existe fraude, e negociam com as operadoras em nome do cliente. No plano coletivo, quem protege o cliente final sou eu. O cliente final gosta da Qualicorp porque o plano dele não sobe tanto quanto os outros, e os RHs das empresas adoram porque nós ajudamos a controlar os custos. Nós vivemos de controlar custos. Já a mentalidade do setor é de repassar custos.

Como assim? É a contracultura do controle de custos?

Não raro, nos planos corporativos empresarias, há operadoras pedindo reajustes anuais na casa dos 30%, 40% ou até mais – quando não pedem direto a rescisão. A gente representa o cliente e luta contra isso, mas o sistema está anacrônico, precisa mudar…

Vou te dar outro exemplo. Quando o então ministro José Serra fez a lei de saúde complementar em 1998, ele colocou lá que a lei era retroativa, ou seja, que os planos que já tivessem sido vendidos antes da lei também ficariam sob controle de preços. Algumas operadoras lutaram contra isso, e em 2002 levaram o caso ao Supremo Tribunal Federal — e ganharam. No mês seguinte, teve operadora rodando boleto com 87% de aumento. (Detalhe: nunca receberam, porque pipocaram liminares em todo o País.)  Eu acho até que as operadoras estavam certas, mas isso mostra como repassar preço, para elas, é algo automático. Essa lógica tem de ser mudada, senão daqui a pouco o consumidor não aguenta mais.

Faz sentido ficar debatendo reajustes sem tentar lidar com a questão dos custos médico-hospitalares?

Nós achamos que este é o grande debate e estamos prontos para colaborar com ele. Apenas liberar preços ou reajustes não vai resolver nada, além de ter um enorme impacto social. Vai ser como enxugar gelo.

Outro dia, um grande hospital de São Paulo, cliente da Qualicorp, recebeu a proposta de reajuste anual da seguradora de saúde que cobre os funcionários deste hospital. A proposta era de 40%. Quando o hospital foi, “abrir o sinistro” [ver as taxas de sinistro que aconteciam na carteira para determinar qual nível de reajuste faria sentido], identificou situações de atendimento pelas quais ele mesmo poderia se responsabilizar e propôs uma sistemática alternativa para melhorar o controle destes custos elevados. Com este compromisso, o reajuste ficou abaixo de 20%. Ou seja, há alternativas de gestão assistencial que podem modificar dramaticamente os custos na saúde suplementar.

Quais são os incentivos econômicos dos hospitais hoje?

Como as diárias pagas pelos planos de saúde são irreais, os hospitais têm buscado sua margem de lucro em materiais e medicamentos, criando uma distorção enorme.  Hoje, quase toda rentabilidade de um hospital vem de materiais e medicamentos. Esse sistema abre espaço para tratamentos desnecessários e escândalos como o das próteses. Quanto maior a complexidade da doença, maior o consumo de materiais, medicamentos e uso de tecnologia, melhor pro hospital. Não é à toa que estão sumindo os leitos de pediatria e maternidade, que em geral gastam menos materiais.

Essa questão das fraudes à parte, do jeito que o sistema está, os hospitais hoje não estão economicamente comprometidos com reduzir ou otimizar os custos. Hoje, os hospitais brasileiros são remunerados num sistema conhecido na indústria como “fee for service”. Isso significa que, a partir do momento em que o paciente entra no hospital, cada band-aid, cada exame, cada procedimento é cobrado separadamente. É como um taxímetro ligado, e a corrida sai muito cara para o paciente.

Nos EUA, cada vez mais as operadoras estão indo na direção oposta.  Estão trabalhando com ‘preços fechados’ para cada tipo de tratamento. Por exemplo, uma apendicite custa ‘x’.  E o hospital tem que resolver o problema naquela faixa de preço.  Além disso, a operadora remunera o hospital com uma parte variável atrelada à qualidade do serviço prestado. Isso evita abusos e estimula racionalidade de custos, ao mesmo tempo em que resolve o problema do paciente.

E no Brasil?

A Qualicorp vai crescer nesta direção. Vamos negociar parcerias com operadoras para desenvolver novos modelos de gestão assistencial focados em resolver o problema do paciente. Hoje, tem operadora que passa um ano sem te ver, aí chega e diz, ‘tá aqui o aumento’. Não oferece serviços, acompanhamento, soluções, inteligência nenhuma. Quando você precisa de um bom ortopedista, você procura uma recomendação com a sua operadora?

Não. Eu nem tenho essa expectativa em relação a ela.

Exatamente. Mas por que não? Por que ela não poderia te prestar este serviço? O que a gente tem hoje é um sistema que repassa ao consumidor suas próprias ineficiências, glosa fornecedores e frequentemente gera dificuldade de acesso [do paciente]. Ou mudamos este modelo ou daqui a três anos a gente ainda vai estar aqui discutindo que reajuste aplicar nos individuais.

*****

ATUALIZAÇÃO:  A assessoria da Qualicorp enviou a seguinte ‘nota de esclarecimento’:   Com relação à matéria “A Amil, a Qualicorp – e um grave problema de saúde”, esclarecemos que a Qualicorp é favorável à flexibilização do reajuste dos planos individuais e ao direito das operadoras de saúde manterem o equilíbrio econômico-financeiro dos seus contratos, ainda que a companhia alerte que somente isso não irá resolver a sustentabilidade do sistema; aproveitamos também para esclarecer que eventual flexibilização do reajuste dos planos individuais não afeta a operação da Qualicorp.