Em 2020, três estudantes de biologia celular do Imperial College of London se uniram para fundar a Multus, uma startup que opera na chamada “agricultura celular” – essencialmente, a reprodução de células animais em laboratório.
Essa indústria ainda não existe comercialmente em nenhum lugar do mundo, mas tem recebido toneladas de investimento por ser vista como uma das principais alternativas à escassez global de alimentos – e aos efeitos nocivos que a agricultura causa ao meio ambiente.
Basicamente, os cientistas tentam reproduzir a célula do animal, criando alimentos idênticos aos reais. Com isso, é possível, por exemplo, criar uma carne bovina exatamente igual à carne retirada do boi, mas sem causar sofrimento aos animais e nem impactos no meio ambiente.
A Multus – fundada por Cai Linton, Kevin Pan e Réka Trón – atua no desenvolvimento dos meios de cultivo, um conjunto de proteínas e açúcares que permitem que as células animais se reproduzam e cresçam.
O problema: hoje os meios de cultivo são extremamente caros e respondem por cerca de 50% dos custos de uma cultura celular. A Multus está tentando criar meios de cultivo mais baratos e que sejam escaláveis.
A oportunidade que a startup está tentando abocanhar é gigantesca.
Cai disse ao Brazil Journal que a agricultura celular vai tornar os animais redundantes na produção de carnes, couros, laticínios, e muitos outros produtos.
“São indústrias que valem trilhões de dólares hoje e contribuem de forma desproporcional para a mudança climática, perda da biodiversidade e para as doenças humanas,” disse ele. “As carnes cultivadas em laboratório vão trazer um benefício enorme para a humanidade e para a saúde do planeta, mas também representam uma oportunidade financeira gigantesca.”
O cientista-empreendedor cita um estudo da consultoria AT Kearney que projeta que o mercado de carnes cultivadas pode chegar a US$ 140 bilhões já em 2030.
Para capturar parte desse bolo, a Multus acaba de levantar uma Série A de US$ 9,5 milhões liderada pela Mandi Ventures – a gestora brasileira de venture capital de Antônio Moreira Salles e Julio Benetti.
A rodada também teve a participação das gestoras inglesas SOSV e SynBioVen, e da americana Big Idea Ventures, além da Asahi Kasei, uma petroquímica japonesa.
A Multus também conseguiu um ‘grant equity-free’ de US$ 2,5 milhões de um programa de inovação do Governo do Reino Unido.
A agricultura celular é uma tecnologia completamente diferente daquela usada pelas fabricantes de carnes plant-based como a Beyond Meat e a Fazenda Futuro.
Os principais players dessa indústria hoje são as startups Upside Foods e Aleph Farms, mas há dois grandes empecilhos para que essas empresas sejam viáveis comercialmente, disse Antonio, o gestor da Mandi.
O primeiro é o processo regulatório – que tem começado a avançar em alguns mercados (recentemente, o FDA aprovou o chicken wings da Upside, por exemplo). O segundo é o custo de produção, que está sendo atacado pela Multus.
Criar novos meios de cultivo é um processo complexo, caro e que consome muito tempo “porque você não pode pegar qualquer meio de cultivo e colocar qualquer célula lá. Você tem que desenvolver a cultura adequada para cada tipo de célula,” disse Antonio.
A Multus faz isso combinando data science com automação para “conseguir vasculhar nossa biblioteca de ingredientes de meios de cultivo não convencionais para destravar fórmulas que sejam acessíveis e de alta performance,” disse Cai.
O primeiro produto da Multus é o Proliferum M, um meio de cultivo para células animais que quer substituir o FBS (fetal bovine serum). O FBS é extraído do sangue de fetos bovinos e usado para permitir que células bovinas se reproduzam e cresçam dentro do laboratório.
“O FBS vai contra um dos princípios da cultura celular, porque para extraí-lo você precisa matar o animal grávido ainda com o feto,” disse Antonio. “A outra questão é o custo dele, que é muito alto hoje.”
Para se ter uma ideia, um litro do FBS custa cerca de US$ 200. Em 2026, quando espera atingir escala, a Multus estima que um litro de Proliferum M custará em torno de US$ 1.
Cai disse que a rodada vai permitir a startup desenvolver uma nova geração do Proliferum M e “construir uma fábrica pioneira no Reino Unido que vai ajudar a levar a indústria de carne cultivada em laboratório em direção a paridade de preços [com as carnes reais].”
A startup disse que já testou o Proliferum M com 50 potenciais clientes e que os feedbacks foram muito positivos.
Para Antonio, tecnologias como a da Multus são a resposta a um dos principais problemas que a humanidade vai enfrentar nos próximos anos.
“Em 2030, seremos 10 bilhões de pessoas! Como vamos alimentar essas pessoas todas em mercados crescentes de consumo? E como fazer isso sem prejudicar o meio ambiente?”