Annie Ernaux, Nobel de Literatura deste ano, participa amanhã e sábado da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que começa hoje.
A academia sueca reconheceu “a coragem e a acuidade clínica” da obra de Ernaux, que tem uma forte carga autobiográfica. Ela teria “exposto as raízes, os estranhamentos e os constrangimentos coletivos da memória pessoal”.
Ernaux pertence a uma estirpe de escritores que transformaram a si mesmos em personagens. Abaixo, cinco autores modernos, incluindo a própria, que exploraram essa vertente.
Annie Ernaux (nascida em 1940)
Nos cinco livros já lançados no Brasil pela editora Fósforo, a escritora esmiúça diferentes aspectos de sua biografia em busca de seus significados sociais mais amplos.
Os Anos (2008), talvez sua obra mais ambiciosa, pretende ser, como é dito no próprio livro, um “romance total”, mostrando “a passagem do tempo em seu interior” – isto é, da perspectiva pessoal da autora – e também do ponto de vista largo da História, com H maiúscula.
Empreendimento memorialístico ímpar, o livro acompanha a trajetória de Annie com distanciamento “clínico” (como definiu a academia sueca) enquanto documenta as aspirações e ilusões coletivas de uma geração que já começara a trabalhar e constituir família quando veio o abalo da revolução sexual e das revoltas de Maio de 1968 (que Annie acompanhou à distância, pois não morava em Paris na época).
J. M. Coetzee (nascido em 1940)
Nobel de Literatura de 2003, o autor sul-africano é conhecido sobretudo por romances devastadores como À Espera dos Bárbaros e Desonra, nos quais a criação literária não toca na vida do criador.
Sua biografia invade a ficção em três obras – todas publicadas pela Companhia das Letras – protagonizadas por um escritor chamado John (o J.M. com que o autor assina seus livros é, por extenso, John Maxwell).
Em Infância (1975) e Juventude (2002), a formação desse personagem é descrita de forma seca por um narrador em terceira pessoa. Verão (2009) é um experimento mais radical. Neste livro, um biógrafo tenta levantar material sobre a vida do escritor John Coetzee – que já morreu.
Mas Verão não é uma biografia acabada: a obra reúne páginas de um diário do Coetzee fictício e depoimentos nada lisonjeiros sobre ele prestados por parentes, amantes e colegas que o biógrafo entrevistou. Curiosidade: uma das entrevistadas é uma brasileira professora de dança chamada Adriana Nascimento, que Coetzee teria tentado seduzir – sem sucesso.
Jorge Luis Borges (1899-1986)
O argentino ambicionava ganhar o Nobel, mas a academia sueca esnobou seu gênio. Em alguns de seus mais engenhosos contos, o personagem que se defronta com objetos ou situações fantásticas é o próprio Borges.
Em O Aleph, conto que dá título a uma coletânea de 1949, é Borges quem encontra – num porão de Buenos Aires, claro – o ponto singular no qual todas as coisas do mundo podem ser vistas ao mesmo tempo.
Em um texto breve intitulado Borges e Eu (1960), o argentino chega a dissecar a diferença entre sua pessoa real e a criatura literária chamada Borges: “Eu vivo, eu me deixo viver, para que Borges possa tramar sua literatura, e essa literatura me justifica.”
Philip Roth (1933-2018)
Outro portento literário que o Nobel negligenciou, o americano Philip Roth exercitou-se em livros de memórias mais ou menos convencionais, como o pungente Patrimônio, sobre a morte de seu pai.
Mas no romance Complô Contra a América (Companhia das Letras), ele constrói uma versão alternativa da história na qual o aviador Charles Lindbergh, simpatizante do nazismo, candidata-se a presidente dos Estados Unidos em 1940 e derrota Franklin Roosevelt, que buscava a reeleição.
No centro da trama está uma família judaica às voltas com um país que já não reconhece os judeus como cidadãos plenos: os Roth, incluindo o menino Philip. Lançado em 2004, Complô Contra a América voltou ao debate público americano durante a presidência de Donald Trump.
Curzio Malaparte (1898-1957)
Único nome desta lista que não foi sequer cogitado para o Nobel, o jornalista e escritor italiano compôs duas obras perturbadoras que ocupam uma zona indefinível entre o memorialismo, o jornalismo e a invenção ficcional.
Kaputt (Alfaguara), de 1944, é um painel sinistro do horror que o nazismo impôs às nações ocupadas – em particular, no leste da Europa. A Pele (Autêntica), de 1949, descreve a situação miserável a que sua Nápoles natal havia sido reduzida quando foi liberada pelo exército americano em 1943.
Correspondente de guerra com insígnias de oficial da Itália, Malaparte estava autorizado a circular pelas frentes de combate alemãs na União Soviética e até visitou o Gueto de Varsóvia, onde testemunhou atrocidades.
Mas não se deve acreditar em tudo que Malaparte relata. Um episódio marcante de Kaputt envolve cavalos que, apavorados em meio a uma batalha na Carélia, uma região fronteiriça entre a Rússia e a Finlândia, correram para dentro do lago Ladoga – e foram instantaneamente congelados.
Malaparte conta que costumava bater papo com soldados finlandeses sobre o lago congelado, e todos se sentavam na cabeça dos cavalos mortos.
Acredite. Se quiser.