O capital no século XXI, publicado há quase dez anos pelo francês Thomas Piketty, incendiou o debate sobre a desigualdade social e colocou a distribuição de renda no centro das discussões de políticas públicas. Nenhum livro de economia foi tão comentado na última década.

A conclusão central do livro era que a desigualdade tenderia a crescer ao longo do tempo porque a taxa de retorno do capital – o “r” –  avança em uma velocidade superior ao “g” – o crescimento do PIB e da renda média da população.

Thomas pikettyDebruçando-se sobre dados históricos, Piketty identificou que apenas em períodos de guerra e outros eventos desastrosos havia ocorrido um estreitamento significativo da discrepância entre a riqueza dos mais pobres e aqueles no topo da pirâmide. Uma das soluções para combater a desigualdade, profetizou o francês, seria tributar em 80% as grandes fortunas.

De lá pra cá, Piketty ganhou discípulos e desafetos na mesma proporção. Recebeu inúmeras críticas pelo seu lúgubre malthusianismo social em um mundo evidentemente mais próspero do que nos séculos passados, e alguns pesquisadores identificaram inconsistências nas estatísticas apresentadas no livro.

Em 2019, o economista voltou à carga com Capital e ideologia, mais um calhamaço de quase 1.000 páginas em que faz um voo histórico sobre as disparidades e analisa os caminhos para superá-las. É um livro mais político, de ideias, no qual Piketty conclui que a origem da desigualdade não está nem na economia nem na tecnologia; ela seria uma construção “ideológica e política”. Mais uma vez, foi alvo de críticas intensas.

Agora, com Uma Breve História da Igualdade (Intrínseca, 304 páginas), que acaba de chegar às livrarias, Piketty faz uma síntese de seus livros anteriores em um texto mais leve e acessível ao grande público. Curiosamente, é também um livro cujo tom é um pouquinho mais otimista.

“O mundo do início dos anos 2020, por mais injusto que possa parecer, é mais igualitário do que o de 1950 ou o de 1900, que eram, por sua vez, em múltiplos aspectos mais igualitários do que os de 1850 ou 1780,” Piketty escreve na introdução. O autor reconhece que “existe um movimento histórico voltado para a igualdade pelo menos desde o fim do século XVIII”.

Piketty insiste no argumento de que as escolhas dos países a respeito de seus sistemas educacionais ou tributários serão sempre políticas e ideológicas — e daí deriva a desigualdade, porque são as sociedades que “inventam regras e instituições para se estruturar e distribuir as riquezas e o poder”.

Contudo são escolhas políticas reversíveis, argumenta o economista. Para Piketty, as lutas sociais podem desencadear mudanças, mas por si só são insuficientes para superar as “instituições desigualitárias.” Taxar pesadamente bilionários e plutocratas transnacionais também não sanará todos os males, admite ele.

O avanço das últimas décadas, argumenta, decorreu de conquistas como o voto universal, a educação básica gratuita e obrigatória, a tributação progressiva e a liberdade de imprensa. Para estreitar o fosso social, será necessário aprimorar essas instituições.

“O fim da história não será amanhã,” declara Piketty. “A marcha rumo à igualdade tem ainda um longo trajeto a ser percorrido, sobretudo num mundo no qual os mais pobres (e em particular os mais pobres dos países mais pobres) estão prestes a sofrer, de modo cada vez mais violento, as devastações climáticas e ambientais provocadas pelo estilo de vida dos mais ricos.”

A justiça social, defende o autor, está em um “socialismo democrático, ecológico e diversificado,” e não na “ideologia hipercapitalista ultrapassada” das potências ocidentais.

Piketty, mesmo em sua roupagem mais otimista, segue fazendo barulho.

Abaixo, um trecho da introdução de “Uma breve história da igualdade”.

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Este livro propõe uma história comparativa das desigualdades entre as classes sociais nas sociedades humanas. Ou melhor, uma história da igualdade, pois, como veremos, existe um movimento de longa data rumo a cada vez mais igualdade social, econômica e política no decorrer da história.

Não se trata, é claro, de uma história agradável, muito menos linear. As revoltas e as revoluções, as lutas sociais e as crises de todas as naturezas desempenham papel central na história da igualdade que será estudada aqui. Essa história é igualmente pontuada por inúmeras fases de retrocesso e de recuos identitários.

O fato é que existe um movimento histórico voltado para a igualdade, pelo menos desde o fim do século XVIII. O mundo do início dos anos 2020, por mais injusto que possa parecer, é mais igualitário do que o de 1950 ou o de 1900, que eram, por sua vez, em múltiplos aspectos mais igualitários do que os de 1850 ou 1780. As evoluções específicas variam de acordo com os períodos e se nos interessamos pela desigualdade entre classes sociais definidas pelo status jurídico, pela propriedade dos meios de produção, pelo nível de renda ou de escolaridade, pelo gênero, pela origem nacional ou etnorracial — e muitas dessas dimensões vão nos interessar aqui. Mas, no longo prazo, a constatação é a mesma, não importa qual o critério adotado.

Entre 1780 e 2020, observamos evoluções voltadas para mais igualdade de status, de propriedade, de renda, de gênero e de raça na maioria das regiões e sociedades do planeta e, em certa medida, em escala mundial. Em vários aspectos, essa marcha rumo à igualdade foi também aprofundada ao longo do período de 1980 a 2020, mais complexo e com mais contrastes do que às vezes se imagina, se adotarmos uma perspectiva mundial e multidimensional em relação à desigualdade.

A tendência de longo prazo rumo à igualdade é real desde o fim do século XVIII, mas não menos limitada em sua magnitude. Veremos que as diferentes desigualdades continuam a se estabelecer em níveis consideráveis e injustificáveis em todas essas escalas (status, propriedade, poder, renda, gênero, origem etc.), que, ademais, com frequência acumulam seus efeitos em nível individual. Afirmar a existência de uma tendência à igualdade não constitui, em hipótese alguma, um apelo a comemorar, muito pelo contrário. Trata-se, muito mais, de um apelo a continuar o combate, sobre uma base histórica sólida.

Ao nos debruçarmos sobre o modo como esse movimento rumo à igualdade de fato se produziu, é possível aprendermos lições preciosas para o futuro, compreendermos melhor as lutas e as mobilizações que o tornaram possível, bem como os dispositivos institucionais e os sistemas jurídicos, sociais, tributários, educacionais e eleitorais que permitiram que a igualdade se tornasse uma realidade sustentável. Infelizmente, esse processo de aprendizado coletivo das instituições justas é muitas vezes enfraquecido pela amnésia histórica, pelo nacionalismo intelectual e pela compartimentalização dos saberes. Para prosseguir na marcha rumo à igualdade, é urgente retroceder na história e ultrapassar as fronteiras nacionais e disciplinares. A presente obra, ao mesmo tempo um livro de história e de ciências sociais, otimista e de mobilização cidadã, tenta avançar nessa direção.