“Pretendo partilhar o poder, de forma progressiva, responsável e consciente, de Brasília para o Brasil; do poder central para estados e municípios”. Acredite ou não, essa frase foi dita por Jair Bolsonaro em seu discurso de posse em janeiro de 2019.
Passados quatro anos, o cenário que presenciamos é justamente o contrário. O Governo tem se voltado contra a estrutura federativa do Estado brasileiro, numa verdadeira cruzada antifederalista – e, pior, com um inédito apoio de parte do Congresso Nacional.
O diagnóstico que será detalhado a seguir demonstra isso. A participação da União na Carga Tributária Brasileira (CTB) em 2021 teve aumento de 1,5 ponto percentual em relação ao ano anterior, atingindo 22,5% do PIB. Os estados, por sua vez, tiveram aumento de apenas 0,6 ponto. Já entre 2006 e 2022, enquanto a dívida federal aumentou 19,7 p.p. em relação ao PIB, a dívida estadual se ampliou em 2,5 p.p., e a municipal, 0,6.
Ou seja, a União concentra mais recursos, contribui mais para o endividamento e ainda impõe irresponsabilidade fiscal ao restante da nação.
Faz isso com pautas deliberadas pelo Congresso e impostas pelo Executivo, que passou a avançar para cima de governos estaduais, municipais e Assembléias Legislativas. Medidas que deslegitimam a Federação, ampliam despesas, reduzem receitas e bloqueiam a possibilidade de maior arrecadação de estados e municípios.
O País convive com mais de 10 meios de transferência de recursos para os entes federativos, (como Fundeb, FPE, FPM, FPEX, para citar apenas alguns), a maioria deles de natureza obrigatória – mas são repasses desalinhados com as necessidades locais e sem o acompanhamento da qualidade do gasto, indicadores e metas.
Estamos na contramão de países com crescimento econômico sólido. Podemos aprender com as experiências do Canadá e da Austrália, cujas clareza e diferenciação nas responsabilidades dos entes federativos levaram a uma melhoria na qualidade das políticas públicas.
Seus entes subnacionais têm autonomia legislativa e possuem mecanismos de pesos e contrapesos capazes de aferir o cumprimento dos objetivos da política pública. Estamos falando de monitoramento e avaliação de resultados. Há ainda exemplos bem sucedidos em países como Alemanha, Reino Unido, Itália e Japão, que não são organizados em estados federados e descentralizam a implementação de políticas públicas.
No entanto, em vez de nos inspirarmos nas boas práticas de nações jovens mas consolidadas, escolhemos o caminho do desajuste. É o que testemunhamos hoje na política nacional.
Dos projetos aprovados que reduzem drasticamente as receitas dos estados, o mais famoso é o Projeto de Lei Complementar 18/2022 que alterou a Lei Kandir, limitando a 17% ou 18%, dependendo do Estado, a alíquota máxima do ICMS cobrado sobre os setores de combustíveis, energia, transportes e comunicações, sem nenhuma compensação para estados e municípios.
Ou seja, na prática, Brasília transformou o ICMS em um imposto federal, com discricionariedade estadual apenas para minorar as alíquotas até um teto, o que desvirtua a estrutura lógica da carga tributária brasileira.
E mais, criou um paradoxo: desmoraliza e descumpre o Teto de Gastos, mas cria Teto para Impostos. Só para esse ano, os Governadores estimaram perda de cerca de R$ 100 bilhões – sem falar nos Prefeitos, que agora serão sócios na perda do ICMS, pois recebem 25% em repasses do total arrecadado.
O presidente justifica que os estados receberam auxílio da União em 2020 por causa da pandemia, e por isso não precisariam de compensação. Mas quem acompanhou as discussões acerca da Lei Complementar 173/2020, de minha autoria, que estabeleceu o Programa Federativo de Enfrentamento à Covid-19, se lembrará que o Governo Federal se mostrou contrário a várias dessas medidas e resistiu o quanto pôde a implementá-las. Se o auxílio saiu, foi por conta de uma aliança formada entre os governadores e o Congresso.
Agora, os governadores tentam bloquear a alteração e limite do ICMS diretamente no Supremo Tribunal Federal, e os prefeitos vão em marcha ao Congresso contra pautas graves que estão sendo votadas. Esse era, por princípio, um papel de concertação que deveria ser do Senado Federal, que tem funcionado muito menos como a Casa da Federação e mais como uma segunda Casa, que compete com a Câmara. E depois se reclama do ativismo do Supremo.
O mais recente e emblemático exemplo é a PEC 1/22, a “PEC Kamikaze” (ou PEC da Eleição, PEC do Fim do Mundo, PEC do Desespero…) que, a aproximadamente três meses da eleição, aumenta em R$ 200 o Auxílio Brasil, dobra o vale-gás, cria um auxílio caminhoneiro e, entre outras medidas, reduz os tributos sobre os preços de diesel, biodiesel, gás e energia elétrica.
Uma série de medidas poderiam ser trabalhadas para garantir mecanismos federativos mais atualizados e alinhados com as melhores práticas internacionais, mas antes é preciso haver uma mudança de postura política.
Para fortalecer a federação, precisamos urgentemente de:
(i) Redesenho dos mecanismos de repartição das transferências: é necessário estabelecer uma estrutura de incentivos clara para os entes subnacionais, que esteja alinhada com o monitoramento de desempenho das políticas públicas;
(ii) A retomada do papel dos estados como articuladores federativos na implementação de políticas públicas intergovernamentais e mais autonomia para os municípios na gestão dos valores repassados;
(iii) Racionalização dos fundos, unificando-os em torno de temas integrados (não somente setoriais) para promover maior flexibilidade do uso de recursos e poder atacar problemas locais concretos – tal como fazem Austrália e Canadá.
(iv) Criação de um Código Fiscal no Brasil. Revisão, aprimoramento das regras fiscais, teto de gastos, regra de ouro, Lei de Responsabilidade Fiscal, conselho de gestão fiscal, premiação para Prefeitos e Governadores eficientes.
Ainda que a promessa em 2019 tenha sido “mais Brasil, menos Brasília”, o que se vê hoje é uma escalada de mais Brasília – e muito menos Brasil. Há no Governo Federal o desejo explícito de uma relação direta com a população. Quando cria o Auxílio Brasil, Vale Gás, Pix para caminhoneiros e taxistas, ele ignora a federação e as parcerias com Estados e Municípios e caminha para uma espécie de desfederação do País.
Pedro Paulo é economista e deputado federal pelo PSD-RJ. Foi Secretário Municipal de Fazenda e Planejamento do Rio de Janeiro.