Beaune está para os vinhos assim como New Orleans para o jazz ou Alba para as trufas: mais do que uma referência, a pequena cidade francesa é um centro de peregrinação para os aficionados. Situada no coração da Borgonha, Beaune é uma comuna medieval murada, cercada pelos vinhedos históricos da Côte d’Or e firmemente enraizada no passado.
Mas nem tudo ali ficou parado no tempo.
O melhor exemplo disso é o Hospices de Beaune, uma espécie de Santa Casa de Misericórdia local que se converteu no centro médico e afetivo da região. Além do atendimento aos doentes, o hospital é conhecido por fazer vinhos de qualidade e vendê-los num grande leilão beneficente anual.
Explica-se: ao longo dos séculos, o Hospices acumulou vinhedos recebidos em doações das famílias locais como retribuição por seus inestimáveis serviços para a região. Assim, chegou aos 60 hectares atuais – um latifúndio para os padrões da Borgonha, que é notória por suas micro propriedades. Boa parte das terras são de Premier e Grand Cru, as denominações mais cobiçadas, cujos valores atingiram patamares que deixariam inebriado até o mais experiente dos investidores imobiliários.
Antes restrito à comunidade local, o leilão agora atrai compradores de várias partes do mundo – da China ao Brasil. O sucesso aumenta a cada ano, num ciclo que parece à prova de guerras e pandemias.
Para entender como o leilão chegou a esse ponto é preciso dar um passo atrás – mais de 500 anos atrás, no caso.
O Hospices de Beaune foi fundado em 1443, uma época em que a França vivia assolada pela fome e pela peste decorrentes da Guerra dos Cem Anos. A construção do hospital foi obra de Nicolas Rolin – Chanceler do Duque da Borgonha, conhecido como “Felipe, O Bondoso” – e sua mulher, Guigone de Salins.
Erguida em estilo gótico e facilmente reconhecível pelo telhado adornado com extravagantes formas geométricas coloridas, a antiga sede do Hospices – agora convertida em museu – é o “Instagram spot” obrigatório para quem visita Beaune.
Além de história e tradicionalismo, há uma boa dose de inusitado no Hospices – não é sempre que uma instituição de saúde se sustenta produzindo e vendendo bebidas alcóolicas (ah, a França). Detalhe: no leilão não se vendem garrafas, e sim barricas inteiras de 228 litros, com vinho inacabado dentro, que ainda precisa evoluir por meses ou anos até estar pronto.
Debaixo do verniz da Idade Média, contudo, há uma organização que soube se reinventar espetacularmente. De 1994 para cá, o Hospices de Beaune ganhou instalações de vinificação com o estado-da-arte em tecnologia, contratou enólogos de primeira linha e fechou acordos com renomadas casas de leilão para gerir as vendas – primeiro a Christie’s, de 2005 a 2020, e desde o ano passado a Sotheby’s.
Com isso, conseguiu surfar na globalização dos vinhos. Compradores do mundo todo, especialmente os nouveau riche da Ásia, vêm puxando os preços dos rótulos franceses incessantemente nas últimas décadas. A Borgonha, conhecida por seus refinados tintos à base de Pinot Noir e gloriosos brancos de Chardonnay, foi talvez a maior beneficiada por esse fenômeno.
“Fazer vinhos é como dirigir. Não se deve prescindir do retrovisor, mas é preciso olhar para frente”, diz Ludivine Griveau, enóloga-chefe do Hospices de Beaune. (Em 2015, para espanto de muitos, Ludivine superou 80 candidatos e se tornou a primeira mulher a comandar a produção de vinhos do Hospices, a própria personificação dos avanços pelos quais a organização vem passando.)
O resultado disso é sentido na taça, mas também na conta bancária do hospital. O leilão do Hospices de Beaune há muito não sabe o que é um “bear market”. Em 2021, devido às condições climáticas, a produção foi minúscula – e a lei da oferta e da procura se fez cumprir. O número de lotes ofertados foi a metade do ano anterior, mas os preços subiram 60%.
Realizado sempre no terceiro domingo de novembro, o leilão ocorre em meio a três dias de festividades conhecidos como Les Trois Glorieuses, que inclui desde um jantar black-tie até feiras de vinhos e comemorações com comida e bebida pela cidade. O certame talvez seja a parte mais sóbria desse fim de semana de esbórnia por uma boa causa – comprar grandes vinhos – e uma ótima – ajudar a financiar o hospital de caridade.
O ponto alto é a venda do lote Pièce des Présidents, o mais nobre em cada safra. Na última edição, uma empresa de Londres pagou € 800 mil por uma única barrica de um Corton Renardes Grand Cru – um recorde absoluto.
A pergunta que até as pedras de Beaune se fazem é se este ano, em meio a uma economia global fragilizada e juros em alta, a ressaca finalmente chegará aos preços dos vinhos da Borgonha.
“Acho que essa alta vai ter de parar algum dia”, diz Ludivine. “Mas não sei quando. Já achamos antes que isso aconteceria. Quando começou a guerra na Ucrânia, por exemplo, os compradores do mundo todo correram para repor seus estoques com medo de interrupção no fornecimento – e os valores subiram mais ainda.”
O Brasil passou a participar ativamente do leilão em 2013, pelas mãos de Alaor Pereira Lino, proprietário da indústria química Aqia. Os vinhos são vendidos na Anima Vinum, a empresa francesa que o empresário representa no Brasil. As garrafas mais em conta do Hospices de Beaune estão ao redor de R$ 800; a mais cara atualmente disponível, uma magnum (1,5 litro) do Corton Charlemagne François Salins, um branco da uva Chardonnay, sai por R$ 8.490,00.
Quem quiser comprar 12 garrafas de uma safra ainda em maturação na França e receber quando o vinho estiver pronto ganha o direito de estampar seu nome, ou da família, nos rótulos, como tradicionalmente acontece com quem arremata lotes no leilão. Já há uma fila de espera na Anima Vinum para as próximas vendas nessa modalidade, que devem recomeçar em novembro.
“É muito bom ver o Brasil inserido no mapa de degustações internacionais que fazemos, o que nunca ocorria antes,” disse Ludivine, que passou por São Paulo para promover seus rótulos – o que também faz parte de seu job description.
Para os brasileiros amantes de vinho – pelo menos aqueles com bolsos fundos – essa é uma ótima notícia. Melhor que isso, só se o país também encontrasse uma fórmula para viver num ciclo de crescimento que parece quase eterno.
Ou, vá lá, que pelo menos aproveitasse o exemplo do Hospices de Beaune e também se recusasse a ficar parado no tempo.