O título Winter is Coming (Public Affairs; 320 páginas) envelheceu. Frase popularizada por Game of Thrones, “o inverno está chegando” quase já não é mais repetida nas conversas de bar e nas redes sociais desde que a série da HBO chegou ao fim, em 2019.
Mas o conteúdo do livro – lançado em 2015, quando Game of Thrones estava na sua quinta temporada – ganhou renovada atualidade graças à Guerra da Ucrânia. Escrito por Garry Kasparov, o campeão do xadrez que se converteu em eloquente militante pró-democracia na Rússia, Winter is Coming é um devastador balanço da escalada autoritária de Vladimir Putin.
O livro também traz uma dura condenação aos líderes europeus e americanos que – pela dependência do gás e do petróleo ou para manter-se em bons termos com uma potência nuclear – concederam a Putin total liberdade para apertar a repressão em seu próprio país e expandir suas ambições imperialistas na Geórgia, em 2008, e na ocupação do território ucraniano da Crimeia, em 2014. No amplo e incisivo j’accuse de Kasparov entram do presidente francês Nicolas Sarkozy ao americano Barack Obama.
Embora nascido no Azerbaijão, Kasparov, 59 anos, é cidadão russo. Começou sua carreira no xadrez pela União Soviética. Aposentou-se das competições em 2005 com o recorde de enxadrista que por mais tempo permaneceu no primeiro lugar do ranking mundial. Desde então, converteu-se em ativista.
Em 2012, ele foi espancado pela polícia (num episódio relatado com humor sardônico no livro) e passou cinco dias na cadeia por participar de um protesto contra a prisão da banda punk Pussy Riot. No ano seguinte, Kasparov buscou exílio voluntário em Nova York, onde vive com a família ainda hoje.
Foi uma escolha sensata, considerando a sorte de tantos de seus companheiros na oposição a Putin – como Alexei Navalny, preso desde 2021, ou Boris Nemtsov, assassinado a tiros nas imediações do Kremlin e a quem Kasparov dedica o livro.
Testemunho vívido das turbulências na política russa dos últimos 30 anos, Winter is Coming começa pelo esfacelamento da União Soviética sob o governo de Mikhail Gorbachev, revisa o caótico governo de Boris Yeltsin, que apesar de corrupto respeitava as instituições democráticas, e então atravessa o longo inverno do governo Putin.
Com indisfarçada vaidade, o enxadrista adora lembrar os alertas que deu a figurões da política externa americana – como Condoleezza Rice, a secretária de Estado de George W. Bush – sobre o perigo que Putin representa para o mundo democrático. Mas ele admite que, nas eleições de 2000, chegou a acreditar que o ex-agente da KGB poderia ser a mão firme de que a Rússia precisava para reformar seu capitalismo oligárquico e mafioso. Logo descobriu que Putin era o capo di tutti capi – o chefão da máfia.
Liberal clássico, defensor do livre mercado e dos direitos civis, Kasparov desde 2005 buscou formar uma frente ampla pela democracia em cooperação com partidos de ideário diverso, como nacionalistas e esquerdistas – todos excluídos do sistema eleitoral por regras que o governo criou para esse fim.
Em 2008, o próprio Kasparov foi indicado candidato à presidência pelo movimento Outra Rússia, mas seu nome nunca entrou na cédula. O vencedor foi Dmitri Medvedev, escolhido para manter a cadeira quente para Putin – que, proibido pela Constituição de buscar um novo mandato, assumiu formalmente o posto de primeiro-ministro.
Em 2012, quando outra eleição fajuta conduziu Putin de volta ao cargo que na verdade nunca deixou de exercer, as fraudes foram tão flagrantes que multidões saíram às ruas para protestar. A frente ampla de partidos sonhada por Kasparov tomou Moscou, mas a repressão venceu. No livro, o ativista se pergunta, melancolicamente, em que momento se perdeu a chance de estabelecer uma democracia na Rússia.
Em várias passagens de Winter is Coming, Kasparov reitera a necessidade de sancionar o governo russo e impedir os oligarcas associados a Putin de acessar os recursos que mantêm no exterior. Infelizmente, medidas similares só começaram a ser tomadas agora, depois que o inverno autoritário de Putin já se estendeu para a Ucrânia.