Dona de uma marca valiosa e de um histórico de 65 anos, a Gafisa enfrentou nos últimos tempos uma tempestade perfeita.
Além dos efeitos óbvios da crise — que paralisou os canteiros de obras e adiou o sonho da casa própria — a construtora sofreu com mudanças bruscas na gestão. No ano passado, nas mãos de Mu Hak You, o controverso fundador da gestora GWI, a Gafisa perdeu talentos e atrasou o pagamento de fornecedores, gerando uma crise reputacional sem precedentes. Seus números foram para o vinagre.
Agora, sob a batuta de Nelson Tanure — que detém 30% do capital da empresa e hoje é membro do conselho — a Gafisa tenta colocar em marcha um turnaround que envolve a retomada dos lançamentos e a entrada em novas verticais do mercado de real estate.
Por enquanto, a construtora fortaleceu sua estrutura de capital, com a injeção de R$ 405 milhões no caixa, reestruturou a equipe e está tentando restabelecer seu nome na praça.
Na semana passada, deu outro passo importante: iniciou o processo de relistagem de suas ADRs nos Estados Unidos, o que aumentará a liquidez para seus acionistas estrangeiros, além de abrir novas possibilidades de captação.
Nesta conversa com o Brazil Journal, o CFO André Ackermann detalha o que já foi feito pela nova gestão e explica como Tanure pretende tirar a Gafisa do buraco. Abaixo os principais trechos da entrevista:
O que Nelson Tanure viu na Gafisa, e quanto ele investiu em ações da empresa até agora?
Esse é o tipo de resposta que eu não consigo te passar. Ele faz parte do bloco Planner, mas entender o que ele viu na companhia e quanto ele investiu acho que não tenho como te responder. O que posso falar é que a marca Gafisa é uma marca incontestável. Tem uma história muito grande, entregou uma quantidade gigantesca de projetos. É uma marca reconhecida, que passou por dificuldades sim, sobretudo no final do ano passado com a gestão antiga, mas é uma companhia que tem uma marca extremamente sólida e reconhecida por todos os stakeholders, desde clientes até fornecedores. Existe um orgulho de morar num apartamento Gafisa e acho que isso é fruto da força da marca que foi construída durante todo esse tempo. É um ativo muito valioso que temos que trabalhar em cima, e estamos fazendo isso da melhor maneira possível.
O que vocês já fizeram em termos de turnaround nesses primeiros meses?
Quando eu cheguei, em junho, já existia um novo board e muita coisa já havia sido feita, mas foi mandatório reforçar a nossa estrutura de capital. E fomos super bem exitosos nesse processo. Fizemos duas tranches de aumento de capital, e vai entrar no caixa da companhia R$ 405 milhões. Agora, nosso índice de dívida líquida/PL está num patamar que dá sustentabilidade para a companhia e permite que a gente comece a avaliar o futuro, olhar para novas oportunidades e lançamentos. Podemos olhar para frente de uma maneira bastante estruturada.
Adicionalmente a isso, fizemos uma reestruturação do time. Chegou muita gente nova do mercado, gente com muita experiência, ao mesmo tempo em que conseguimos reter pessoas que já tinham bastante histórico e que já trabalhavam na Gafisa há anos. Com isso, temos uma mescla de pessoas que conhecem a companhia, que conseguem manter esse histórico, com pessoas que conseguem agregar com experiências de outras empresas do setor. [A Gafisa ainda procura um CEO no mercado.]
Essa parte da estrutura de capital já está equacionada ou ainda tem coisa a ser feita?
Fizemos um processo que traz um nível de fortalecimento muito grande. Mas além disso, nosso conselho de administração já aprovou uma emissão de debêntures conversíveis em ações que pode chegar a US$ 150 milhões. Qual o objetivo com isso? Novos investimentos. Agregar novas áreas, olhar mais pro médio e longo prazo e participar de novos projetos. Achamos que o aumento de capital que aconteceu fortalece muito a empresa, traz um nível de robustez e tranquilidade. Mas existe sim espaço para fazermos outras operações a exemplo dessa que já foi aprovada pelo nosso conselho.
Como está o endividamento e onde vocês querem chegar?
No fechamento do terceiro trimestre, quando já tinha ingressado parte do aumento de capital, a dívida líquida/PL estava em 46%. Para efeito de comparação, no primeiro trimestre, esse número era de 162% e no segundo tri era de 102%. Teve uma redução muito relevante, um fortalecimento da nossa estrutura de capital bem importante. Se você considerar que entrou R$ 76 milhões a mais da subscrição do adicional de sobras que aconteceu em outubro, esse índice que era de 46% caiu para 37%. Entendemos que esse índice é muito saudável.
Pode ter alguma variação para cima, mas vamos tentar manter índices em patamares satisfatórios. Pode eventualmente subir acima do que está hoje, mas não queremos voltar a patamares acima de 100% como era no primeiro trimestre. E se você pegar nosso endividamento bruto que é de R$ 750 milhões, 90% dessa dívida está atrelada a projetos. Ou seja, a medida que vou entregando, vendendo, eu vou pagando. Eu só tenho R$ 75 milhões de dívida clean [dívida na holding].
E essas dívidas são mais de curto ou longo prazo?
Temos alguns vencimentos de curto prazo em função de projetos que já foram entregues e algumas coisas que alongam um pouco mais. Mas como são dívidas atreladas a projetos, naqueles que são mais de curto prazo se a curva de monetização é mais lenta a gente vem fazendo processos de renegociação para alongar um pouco e ficar muito próximo da nossa curva de vendas.
Com essa capitalização, como fica a posição de caixa hoje?
No final do terceiro trimestre tínhamos uma posição de caixa de R$ 394 milhões. Mas isso não considera toda a entrada dos recursos. Não considera os R$ 76 milhões que entraram em outubro.
Vocês venderam o que ainda tinham da Alphaville por R$ 100 milhões. Esse valor vocês receberam em cash ou em ativos?
Esse é um processo de venda que ainda depende de algumas aprovações societárias e de processos de due diligence. O valor da operação foi R$ 100 milhões, e vamos receber parte em compensações de crédito e parte em ativos. Esses ativos que vamos receber vamos fazer uma due diligence deles, e só depois vamos integralizar isso dentro da companhia. São terrenos, lotes já incorporados, é uma coleção de ativos, e estamos agora no processo de fazer a avaliação.
E vocês tem outros ativos que podem ser vendidos?
Estamos avaliando na verdade ativos para trazer para o nosso land bank, é um movimento um pouco diferente. Mas eventualmente, se tiver algum ativo no nosso land bank que entendermos que não está aderente à estratégia que estamos desenhando, podemos avaliar sim nos desfazer dele. Mas não é algo que está no nosso racional nesse momento.
Qual vai ser a agenda daqui pra frente? Como exatamente vocês pretendem gerar valor nesta companhia?
Ao longo desse processo contratamos duas consultorias. A primeira é a Falconi, que está nos ajudando nos processos internos, de redução de custos e criação de metodologias, e que deve permanecer mais um pouco ao longo de 2020. E contratamos a Bain & Company, com um perfil mais estratégico e olhando mais para fora da empresa. E qual a ideia?
Entender e criar um business plan mais de longo prazo, avaliando quais as oportunidades que existem hoje. Evidentemente vamos continuar no negócio que sabemos fazer, que é incorporação imobiliária — voltaremos a fazer lançamentos em 2020 —, mas também queremos avaliar alternativas que possam fazer sentido em função da expertise que temos e da marca Gafisa. Resumindo, vamos focar em incorporação imobiliária, mas também estamos avaliando outras alternativas que tenham a ver com o setor de real estate.
Quais seriam essas alternativas?
Criamos uma área nova que estamos chamando de Novos Negócios. Ainda estamos numa fase preliminar, mas qual o mindset? Avaliar alternativas atreladas ao land bank no mercado e entender o que podemos fazer. Se é uma gestão para terceiros, se é um investimento que eventualmente a gente participe com equity ou prestando serviços. Eventualmente podemos avaliar se faz sentido de maneira oportunista entrar em processo de desenvolvimento logístico. Estamos nos permitindo nesse momento avaliar várias oportunidades, para ver se é um negócio que vamos seguir ou não. Queremos ampliar nossas possibilidades. Esse diretor de Novos Negócios chegou há uma semana na companhia e está começando a fazer uma série de avaliações de alternativas que eventualmente façam sentido sob o aspecto de risco e retorno.
Qual o tamanho do land bank da empresa hoje? Vocês estão focados em comprar mais terrenos?
Nosso land bank hoje permite um VGV (valor geral de vendas) estimado de até R$ 3,8 bilhões. Nesse land bank, R$ 2,5 bi estão no Estado de São Paulo, R$ 750 milhões no Rio de Janeiro e o restante em Porto Alegre e Curitiba. Isso já é o land bank constituído dentro da companhia. Além disso, assinamos dois MOUs (memorandum of understanding) não vinculantes que vão permitir estudar áreas que agregam valor ao nosso land bank em Osasco e no Estado do Rio de Janeiro. Ainda estamos em estudos preliminares.
Qual é o guidance de lançamentos para os próximos trimestres?
Não estamos divulgando guidance, a única informação é que vamos retomar os lançamentos ao longo de 2020. Agora estamos numa fase de planejamento para entender qual vai ser o volume desses lançamentos.
E o nível dos estoques da empresa? Equivale a quantos meses de vendas?
Temos R$ 966 milhões de estoque, dos quais R$ 730 milhões são unidades residenciais e R$ 236 milhões unidades comerciais. Do total, R$ 763 mi estão em São Paulo. Achamos que temos uma parte do estoque que tem algum nível de liquidez e temos um estoque um pouco mais complexo, que são basicamente as unidades com características comerciais. Trouxemos um novo diretor de mercado, que chegou há um mês, e a ideia dele é reestruturar nossa área de vendas. O que é isso?
Estamos revisitando alguns processos e gostaríamos de implementar um modelo de vendas diferente do que o mercado tem hoje. Achamos que no próximo tri já vamos ver uma recuperação do nosso ritmo de vendas, mas acreditamos que a recuperação efetiva vai se dar ao longo de 2020, quando retomamos lançamentos — e no lançamento temos um viés de vendas muito mais alto. E vai ter uma maturidade desse desenvolvimento que estamos implementando agora. Queremos fazer alguma coisa que envolva o uso de tecnologia e que possamos agregar valor para nossos clientes. Alguma coisa voltada para a venda digital, mas que realmente crie valor. Evidentemente vamos continuar olhando para a venda tradicional, mas estamos nos desafiando a trazer um modelo mais inovador.
O negócio de real estate é muito em cima de relacionamentos e reputação, e a Gafisa perdeu muita gente que trabalhava na empresa há anos. Isso não prejudica a recuperação da empresa?
Sem dúvida nenhuma, as pessoas são um dos principais ativos de uma companhia. A Gafisa perdeu muita gente. Mas acho que é importante mencionar também que conseguimos reter muita gente boa e conseguimos trazer muita gente preparada do mercado. Então, uma resposta muito pragmática para a sua pergunta é que sim, isso pode prejudicar, mas já tomamos várias medidas para reverter isso. Hoje, temos um quadro de profissionais de primeiríssima linha e estamos conseguindo reverter nossa reputação com as medidas que estamos tomando. Trazendo a mesma qualificação técnica para os projetos, as obras. Esse é um ponto que poderia ser um problema no passado, mas que hoje já não vemos mais dessa maneira. Já passamos dessa fase, já superamos isso.
Na gestão passada, a companhia teve problemas sérios com vários fornecedores. Vocês já conseguiram resolver essa questão?
Estamos fazendo um trabalho muito sério em relação a isso. Quando chegamos, de fato existia um problema crônico, e a gente vem retomando a agenda com nossos fornecedores no sentido de regularizar todos os eventuais passivos que possam existir. Esse é um trabalho que você não faz da noite para o dia, mas estamos dedicando uma quantidade de horas bastante grande para fazer um processo e retomar toda a nossa agenda com os fornecedores. Eventualmente pode ter um problema isolado ou outro, mas até pelo fato de termos retomado todas as obras, estamos com uma agenda bastante estrutural com esses fornecedores e temos convicção de que vamos cumprir todas as nossas obrigações. Eu acho que esse problema já está mais de 80% resolvido.
Vocês estão fazendo uma due diligence técnica das obras? Porque com a demissão de engenheiros na gestão passada e os conflitos com fornecedores poderia haver problemas nessas obras. É uma questão que estão em cima?
É uma questão que ficamos muito em cima e que inclusive já foi concluída. Primeiro, muitas pessoas que eram da Gafisa, de perfil técnico muito qualificado, continuam conosco nas obras. Além disso, trouxemos pessoas muito qualificadas e com muita experiência nisso e já fizemos toda a análise. Honestamente, em termos do perfil técnico das nossas obras estamos muito satisfeitos. Dos 17 canteiros, seis vão ser entregues até abril do ano que vem. Estão em estágios bem evoluídos.
Mas nessas diligências vocês chegaram a encontrar algum problema?
Sabe por que não? A gestão passada passou pouco tempo na companhia para conseguir causar algum desvirtuamento técnico nos projetos. Houve uma desaceleração das obras, que gerou um problema com os fornecedores. Algumas obras não tiveram sua construção iniciada. Mas um desvirtuamento técnico não teve tempo. O perfil técnico das obras da Gafisa não teve nenhum tipo de intervenção. Tiveram sim problemas com fornecedores, pagamentos que não foram feitos. Mas em qualidade técnica estamos muito satisfeitos.