Neste momento de crise, muitos, no Brasil, têm defendido que o Banco Central expanda a quantidade de moeda para enfrentar os problemas. Essa proposta, no entanto, é incompatível com o modelo de metas de inflação.

Como em qualquer mercado, o BC tem duas opções. Pode fixar a quantidade de moeda que irá disponibilizar e deixar o mercado determinar a taxa de juros, ou fixar a taxa de juros e deixar o mercado determinar a base monetária, absorvendo qualquer excesso de demanda ou de oferta de títulos. Quando, por exemplo, a Selic fixada pelo Copom resulta em excesso de recursos no mercado, o BC tem que adquiri-lo por meio de operações com compromisso de recompra, o que é equivalente a elevar a dívida pública.

Dessa forma, a opção de irrigar o mercado com recursos monetários, o que poderia reduzir as taxas de juros, significaria, na prática, abandonar o modelo de metas de inflação.

A expansão da base monetária, contudo, poderia ser realizada sem maiores consequências no caso extremo em que a taxa básica de juros fosse cortada para próxima de zero. Neste caso particular, títulos públicos de curto prazo e moeda tornam-se substitutos perfeitos. Mas este tipo de expansão monetária também equivaleria a abandonar o modelo de metas de inflação.

Trata-se de uma opção com profunda implicação sobre a política econômica e muitos riscos, pois o regime de metas tem nos proporcionado a baixa inflação das últimas décadas, ao contrário dos principais países latino-americanos que optaram por outros regimes monetários.

A experiência brasileira usual tem sido de excesso de demanda sobre oferta, e não o contrário. É fato que nos últimos quatro, incluindo 2020, tem havido excesso de oferta – a inflação ficou abaixo da meta consistentemente – e é fato que há espaço para uma política de expansão da demanda agregada em tempos de COVID-19. 

Keynes ensinou ser possível o setor público emitir dívida para financiar o gasto em uma economia com capacidade produtiva ociosa. A produção aumenta e o desemprego cai. Mais tarde aprendemos que a eficácia dessa política depende das circunstâncias.

Várias economias do hemisfério norte – o Japão desde meados dos anos 1990 – tem experimentado equilíbrio macroeconômico em que uma taxa básica de juros próxima de zero é compatível com baixa inflação. 

Neste caso, carregar moeda ou títulos da dívida pública com retorno nulo tornam-se equivalentes como opção de investimento.

Nessa circunstância especialíssima, o setor privado deseja, por razões estruturais, poupar mais do que gastar, mesmo que a remuneração seja nula ou até negativa. Por isso, o Banco Central pode financiar déficits elevados do Tesouro com emissão de moeda sem se preocupar com a restrição fiscal.

Essa, entretanto, não é a situação dos principais países da América Latina. A Venezuela há anos convive com hiperinflação. A Argentina de Macri também apresentou inflação. É possível argumentar que o problema inflacionário na Venezuela e na Argentina de Macri não era um típico problema de excesso de demanda sobre a oferta, mas sim que havia um problema de falta de divisas externas.

A Argentina dos anos 2000, nos governos do casal Kirchner, é um contraexemplo dessa tese. O país não tinha dívida externa relevante; afinal, acabara de dar um calote. A situação fiscal era favorável e a inflação era relativamente baixa. No entanto, optou-se por adotar uma política monetária muito frouxa. Mesmo havendo superávit primário do setor público, tanto no governo Néstor quanto no primeiro ano do governo de Cristina, a política monetária frouxa resultou somente no aumento da inflação.

A VOLTA DA INFLAÇÃO

Ou seja, para esses países latino americanos não é verdade que a dívida pública e a moeda sejam equivalentes aos olhos dos poupadores. Caso a dívida pública seja muito elevada e o BC resolva emitir moeda para recomprar títulos, a expansão da política monetária resultado em aumento da inflação, e não em crescimento sustentável.

Não há dúvida que o gasto público deve ser aumentado neste momento para fazer frente à crise da saúde pública e aos seus efeitos colaterais sobre a renda e o emprego. Mas se formos vítimas do oportunismo de sempre e aumentarmos os gastos permanentes, podemos retornar à nossa situação estrutural de excesso de demanda sobre a oferta uma vez passada a pandemia.

O receio expresso no parágrafo anterior se reforça se lembrarmos que uma das forças que têm produzido pressão desinflacionária por aqui é a queda consistente dos juros nos principais países, e de forma muito acentuada desde a grande crise global de 2008. Tudo sugere que o mundo sairá da crise atual com níveis muito mais elevados de endividamento e, provavelmente, com juro neutro maior do que entrou na crise. A possível subida do custo internacional do capital terá impactos negativos por aqui.

A crise da COVID-19 não significa uma licença para gastar indiscriminadamente. A resposta da política pública tem que ser rápida, focada e parcimoniosa, pois quanto maior a dívida ao final deste processo, menor será o crescimento econômico. Como houve forte queda na demanda, a política pública deve garantir a manutenção, na medida do possível, da renda das famílias. Assim, os trabalhadores que ficarão em casa terão, ao menos em parte, seus salários preservados, financiados pelo aumento do déficit público ou pelo aumento do endividamento das empresas, que irão manter o contrato de trabalho dos seus funcionários se as políticas forem bem desenhadas.

Para que essas políticas urgentes neste momento não gerem problemas adicionais nos próximos anos, porém, será necessário cuidado com os programas de crédito subsidiados para as empresas. No limite, parcela significativa da manutenção dos salários será bancada pelo Tesouro, com aumento da dívida pública.

O EMPOÇAMENTO DA LIQUIDEZ NOS BANCOS

Aqui vale esclarecimento sobre o tema da intermediação bancária no Brasil. O grau de alavancagem do sistema bancário brasileiro é tradicionalmente bem menor do que em outros países. Em boa medida, razões regulatórias explicam esse fenômeno.

O maior conservadorismo dos bancos decorre, em parte, do elevado risco de crédito no país, assim como da responsabilização dos acionistas e executivos em caso de inadimplência generalizada. Ao contrário do que ocorre nas demais empresas, não se aplica no Brasil, para os principais executivos e acionistas das instituições financeiras, o princípio da responsabilidade limitada.

Caso o banco entre em falência, acionistas controladores e executivos perdem seu patrimônio pessoal para cobrir as perdas dos depositantes. Isso é particularmente preocupante no Brasil onde, ainda mais em momentos de dificuldades, devedores conseguem liminares para não pagar suas dívidas ou evitar a recuperação das garantias. As regras do jogo induzem um setor bancário muito conservador.

Dessa forma, o desafio para expandir o crédito não é aumentar a liquidez, mas sim reduzir o risco de crédito. Este fato é ainda mais verdadeiro nesta crise que levou a uma parada abrupta e generalizada da produção. Além disso, tem se disseminado decisões judiciais e medidas legais que permitem o não pagamento de fornecedores, o que pode resultar na insolvência de diversas empresas.

Viabilizar a expansão do crédito, neste momento, requer mitigar as perdas decorrentes da inadimplência, como tenta fazer a Medida Provisória 944, em que o Tesouro Nacional fica com 85% do risco de não pagamento. Este princípio precisa, de forma parcimoniosa, ser estendido a outros programas de estímulo ao crédito para enfrentar a crise da COVID-19. Medidas que liberam recursos no passivo dos bancos não serão muito eficazes.

Além disso, o Legislativo e o Judiciário precisam levar em conta que se todo o ônus principal da inadimplência recai sobre os bancos e seus executivos, que têm a obrigação de garantir os recursos dos depositantes, naturalmente haverá dificuldade para expandir o crédito em momentos de crise.

Como o choque que sofremos é imprevisível e generalizado, afetando todos os setores da economia, parte significativa desse risco deve ser assumido pelo Tesouro Nacional, como foi o caso do crédito para a folha de salários; somente 15% do risco ficará com os bancos.

AJUDANDO (APENAS) OS MAIS FRACOS

Do ponto de vista do equilíbrio macroeconômico, a política de sustentação da renda privada resultará no aumento da poupança, fruto da quarentena e da restrição forçada do consumo. Haverá acumulação de ativos por parte das famílias que não sofrem perda de renda neste momento, como a elite do funcionalismo público.

Por essa razão, a política de transferência de renda deve ser cuidadosa para beneficiar exclusivamente os grupos mais vulneráveis, sem comprometer a futura recuperação por ter distribuído parte da riqueza da sociedade, por meio da maior dívida pública, para uma parcela da elite que tem renda garantida, apesar da grave crise.

Teremos que recuperar a economia depois da crise, voltando a produzir e a gerar emprego. Na contramão do mundo, no entanto, já há propostas no Congresso para aumentar a tributação sobre diversos setores. As empresas, no entanto, estão fragilizadas, muitas sem caixa para cumprir as suas obrigações, e impor novos tributos pode resultar em problemas ainda mais graves na economia.

A pandemia atingiu o Brasil depois de muitos anos de crise, que levou parcela do setor produtivo a desistir do país. Têm sido anos de baixo investimento doméstico, agravados pela impressionante saída dos recursos estrangeiros, mesmo antes da pandemia.

Medidas populistas agora serão particularmente desastrosas.

Separar cuidadosamente o joio do trigo nas intervenções de política pública neste momento será essencial para que a crise não se desdobre em uma longa depressão.

 
Marcos Lisboa é presidente do Insper.

Samuel Pessoa é pesquisador do IBRE/FGV e da Julius Baer Family Office.