A Emenda Constitucional 106, promulgada em 7 de maio de 2020, inicialmente conhecida como a PEC do “Orçamento de Guerra”, atravessou como um foguete um território normalmente muito acidentado, fenômeno raro.
Tenho vários problemas com a EC106, começando pelo fato de que atinge velhos traumas dentro do Banco Central ao criar algo como uma “carteira de crédito” no interior da Autoridade Monetária, um vício conhecido, dos tempos antigos em que se fazia “fomento” na mesma instituição responsável pela política monetária, e que vinha esquecido desde a extinção da diretoria de crédito rural (DICRI) no BCB em 1989.
Por que um governo que possui o controle de dois bancos comerciais gigantescos (CEF e BB) e ainda tem o BNDES, e mais o BNB e o BASA, vai criar uma opereta de banco comercial dentro do Banco Central?
É claro que amanhã a “carteira” dará origem a um departamento, ou dois, uma porção de comissionamentos, comitês com gente de outros ministérios, talvez mesmo do Legislativo, e aí é certo que teríamos uma diretoria, e assim estará criada uma igrejinha que nunca mais se desmancha, para não falar em conflito de interesses na regulação do crédito e da política monetária.
Há ainda a tentação que o Parlamento enfrentará para tutelar o mecanismo, criar suas regras e programas, quem sabe umas emendas para as bancadas, recriando o “orçamento monetário”, que tanta tensão produziu nos anos de chumbo entre Executivo e Legislativo, desta vez sob controle deste, uma espécie de revanche institucional de alta octanagem política.
Outro problema é que a EC106 cria poderes excepcionais por um prazo de duração meio indeterminado: a emenda é “automaticamente revogada na data do encerramento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Congresso Nacional” (art. 11), ou seja, um Decreto Legislativo (um ato da mesa, como se fala).
O Decreto Legislativo n. 06/2020, que responde a um pedido do Presidente de 18/03/2020 (Mensagem n. 93) de fato determina o tempo de duração da calamidade (31/12/2020), e aqui o prazo não é limitado no próprio texto da CF, como o do estado de defesa (que pode ser decretado pelo Presidente na presença de “calamidades de grandes proporções na natureza”, pelo Art. 136, caput) e que deve vigorar por trinta dias “podendo ser prorrogado uma vez, por igual período, se persistirem as razões que justificaram a sua decretação” (§2, art. 136 CF).
O Decreto Legislativo n. 06/2020, muito claramente alude a “ocorrência de calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional”, que é a exata linguagem do Art. 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal. O DL06/20 de fato delimita a natureza da calamidade ao observar que o reconhecimento do estado de calamidade se dá “exclusivamente para os fins” de dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal.
A calamidade é fiscal, portanto.
Segue-se do acima exposto que outro decreto legislativo pode alterar a data de vigência da EC106, quantas vezes se entender necessário, e que, tendo em vista que a calamidade fiscal já estava entre nós antes do vírus, e certamente ainda estará entre nós por muitos anos, o caminho não está propriamente fechado para prorrogações da vigência do regime extraordinário da EC106.
Medidas como essa — temporárias enquanto duram, fáceis de prorrogar — oferecem um poderoso convite ao abuso. Sabe-se lá o que pode se passar com arranjos excepcionais colocados em vigor por prazos longos e em resposta a urgências que vão mudando de endereço.
Um precedente horrível: quando o Brasil subscreveu quotas do FMI em 1945, não se subordinou à disciplina do artigo VIII dos Estatutos, que previam a conversibilidade da moeda para transações em conta corrente, alegando que vivia dificuldades “temporárias” de balanço de pagamentos. O provisório durou mais de meio século, quando o Brasil cometeu toda sorte de atrocidades no terreno do controle cambial.
Outro, muito em voga, a CPMF. Será preciso lembrar qual o significado desse “P”?
Um terceiro precedente horroroso, já mencionado, é o hoje considerado infame “orçamento monetário”, um dos pivôs da economia da hiperinflação, que nem temporário foi, de tão inofensivo que se o imaginava quando foi adotado. Com o tempo, todavia, virou um monstro, que diminuiu o tamanho do Parlamento e jogou a moeda brasileira no caos, nada menos.
Bem, temos aqui um arranjo excepcional e delicado, temporário em princípio, mas de arquitetura constitucional, uma encrenca para desarmar se começar a ser usado para o Mal. Um perigo.
Outro assunto é a exata natureza das excepcionalidades concedidas através do Banco Central. É impressionante o nível de detalhe no Artigo 7 da EC106, que estabelece que o BCB somente poderá operar com papeis privados que tenham mercado secundário e que tenham “classificação em categoria de risco de crédito no mercado local equivalente a BB- ou superior, conferida por pelo menos 1 (uma) das 3 (três) maiores agências internacionais de classificação de risco, e preço de referência publicado por entidade do mercado financeiro acreditada pelo Banco Central do Brasil” (Art. 7, inciso II, EC106/20).
O excesso de detalhe na Constituição não é, em si, uma inconstitucionalidade. É apenas confusão desnecessária, na minha modesta opinião. Nossa Carta está repleta de dispositivos que não tratam dos “pontos cardeais da existência política”, expressão usada no parecer sobre a emenda quando tramitou no Senado. E se amanhã for conveniente trabalhar com empresas de classificação BB, ou com ofertas primárias, vamos ter que fazer uma emenda constitucional? Ou bastaria uma “resolução BCB” (nova nomenclatura) com força constitucional?
Em seguida à promulgação da EC106 (07/06), o BCB editou a Circular n. 4.028, de 23/06, reportando decisão da diretoria de 10/06, pela qual se vê que fizemos uma emenda constitucional com matéria normalmente tratada por circulares (decisões de diretoria) do BCB. Não é inconstitucional, sublinhe-se; só esquisito.
Bem, vamos ao contexto, para enxergar as justificativas para a medida. Em primeiro lugar, é fácil ver que o afrouxamento quantitativo vem sendo praticado em muitos países e seu uso possivelmente excessivo, com vistas a suprir um déficit de soluções econômicas para a pandemia por parte das autoridades, acabou produzindo certa exuberância financeira.
A independência do BC é para a política monetária, e sua atuação como regulador (do câmbio e do crédito, por exemplo), não para assuntos fiscais.
Na Europa esse assunto ficou bem complexo com uma decisão da Corte Constitucional da Alemanha pela qual o Banco Central Europeu extrapolou seu mandato ao fazer “afrouxamento quantitativo”, que se entendeu como operação de natureza fiscal. E agora? A Corte de Justiça Europeia deu uma saída para o BCE: aguardem os novos capítulos, será um jeitinho alemão.
Entretanto, na Alemanha e em outros países não se quis que essas dúvidas interferissem na independência do banco central para a política monetária, por isso se trabalhou com mecanismos específicos de governança para essas linhas especiais para as quais as autoridades fiscais tinham de ser ouvidas. Há muitas soluções nacionais criativas por aí, nenhuma constitucional.
A grande dúvida é se precisávamos mesmo de uma emenda constitucional, e de alterar o artigo 164 da CF para empoderar o BCB para fazer o que não deve, e que pode ser feito pelo BNDES, pela Caixa ou pelo BB com recursos (endividamento) do Tesouro, através de algum programa criado por lei ordinária.
É claro que o Tesouro pode implementar programas diretamente com os bancos federais, como fez em 2008, ainda que isso suscitasse desconforto em razão das semelhanças com o que foi feito por Dilma Rousseff. Claro que o problema não é fazer programas de alavancagem dos bancos federais com dinheiro do Tesouro em tempos excepcionais, mas fazê-lo sem a devida autorização. Para isso existem as Medidas Provisórias, que introduzem dispositivos com força de lei ordinária quando atendem aos requisitos de urgência e relevância. Pois é. Não era para termos banalizado esse conceito de urgência. Tampouco para burocratas terem tanto medo do Ministério Público.
Uma última observação precisa ser feita, e tem a ver com o que é específico e singular desta crise: as necessidades de crédito estão no varejo, para colocar em poucas palavras. Isso vale para o Brasil e para o resto do mundo, e em toda parte o que se nota é que os bancos centrais têm tido dificuldades com isso pois são, por defeito de nascença, atacadistas do dinheiro: o banco central é o banco dos bancos, como se diz, e não possui nenhuma experiência e competência especial em crédito no varejo, para pessoas ou empresas, administração de carteiras de crédito e de bancos privados.
Talvez isso mude no futuro com moedas digitais de bancos centrais — um tema que promete, mas que não está maduro.
Acrescente-se a isso o fato de que o conservadorismo do BCB na administração dessas novas linhas de crédito será proporcional à curiosidade que despertará nos auditores do TCU. Para ter ‘perda zero’ e ‘risco zero’, só emprestando para quem já tem, para o que, salve Guimarães Rosa, não há precisão.
Bem, o assunto já está em andamento, a EC106 em vigor e, seguramente, o BCB vai achar um nicho para trabalhar, no andar de cima do mercado de crédito e de capitais, na verdade, na cobertura, onde os moradores, entre os quais os fundos de crédito, não precisam de um PROER, ou precisam?
Difícil mesmo é chegar na feira livre, parecendo complexo que o BCB possa ter algum papel nesses terrenos sem se conveniar com a CEF, BB ou BNDES, mas para isso não precisava de PEC.
No terreno do crédito privado, uma coisa é ser o supervisor ou regulador, outra bem diferente é ser o empresário operador. Essa linha não deve ser ultrapassada pelo BCB. Seria um enorme retrocesso institucional. Muito esforço foi colocado em refinar o nosso modelo de banco central e arrumar a moeda: estragar é muito mais fácil.
Gustavo H. B. Franco é ex-presidente do Banco Central do Brasil e sócio da Rio Bravo Investimentos.