Marcos Azambuja é um dos diplomatas mais experientes do País. Foi secretário-geral do Itamaraty e embaixador na França e na Argentina, entre vários outros postos. 

11125 93abffe3 36ca cfda 8cc4 a62eeac9eca5Aos 85 anos, o embaixador sugere que o Brasil espere o resultado da eleição americana para decidir sua estratégia no 5G.  

“O 5G é simbólico, como já foi em outra época a energia atômica, como já foi o corredor da Polônia. De tempos em tempos a história encontra uma crise que é o símbolo daquele momento.”

Entre nossas afinidades com os EUA e nossa parceria comercial com a China… o Brasil tem que ficar com os dois. “É por isso que pagam aos diplomatas para fazer conta,” diz.

Nesta conversa com o Brazil Journal, Azambuja fala do risco (baixo) de espionagem, do sucesso do agronegócio e de seu diagnóstico do Brasil, um país que, “quando você acha que ele vai bem, ele te decepciona. E quando você acha que vai mal, te surpreende.” 

  
Como não ficar mal nem com os EUA nem com a China na escolha do 5G?
 
Durante a Guerra Fria, o Brasil era um sócio muito pequeno da União Soviética. E da China então, quase nada. E tinha com os Estados Unidos uma relação decisiva. Neste momento, o jogo se alterou. O grande sócio comercial é a China, e a Índia vai se tornando pouco a pouco um imenso consumidor dos produtos brasileiros. E os Estados Unidos guardam sua importância de sempre. O Brasil tem hoje uma situação mais favorável a seus interesses, porém mais complexa do que anos atrás. Então temos motivos para atender a um e a outro.

O mercado e os investimentos americanos para nós ainda são decisivos, e o da China é cada vez mais. Portanto, a realidade obriga o Brasil a uma posição de certa equidistância. Em outras palavras: o Brasil não pode ter nenhum automatismo de resposta por adesão estratégica ou ideológica a um país ou outro. O Brasil tem que ser fiel a ele mesmo, levando em conta que temos todo o interesse em fortalecer a relação com os Estados Unidos e todo o interesse em fortalecer a relação com a China.
 
Mas essa é uma decisão bem difícil…
 
Sim, mas é por isso que pagam aos diplomatas para fazer conta. Nós temos que esperar agora. O mundo está vivendo uma situação anômala, que é o Donald Trump. A eleição americana tem uma importância extraordinária. Se o Trump não for reeleito, nós temos um mundo que volta um pouquinho ao leito habitual. Se o Trump for reeleito, nós temos uma situação com grande potencial de crise, de enfrentamento crescente entre os Estados Unidos e a China.

Mas é importante ressaltar que a crise não é uma invenção do Trump. A China passou a ser um rival estratégico, científico, tecnológico, militar. A China até uns anos atrás era um fornecedor de bens e serviços de que os Estados Unidos precisavam; de produtos que os Estados Unidos não queriam mais produzir em casa.

Agora, não. Veja o exemplo do 5G. A China é líder numa área de alta tecnologia, que é onde o futuro se desenha.
 
A China é uma economia centralizada, um regime autoritário, sem direitos trabalhistas nem órgãos reguladores. Ou seja, não há de fato uma concorrência injusta da China com o mundo ocidental?
 
São dois sistemas diferentes. O sistema chinês é centralizado, vertical, autoritário, não transparente, com uma série de características que não vêm apenas do comunismo, mas também do confucionismo. A China era um país fechado, centralizado muito antes do comunismo. A China tem práticas de trabalho que nos parecem abusivas e excessivas.

Por seu lado, os Estados Unidos têm uma imensa imigração ilegal de pessoas que acabam trabalhando com insegurança. Os centro-americanos, os africanos, os caribenhos, eles chegam aos Estados Unidos para um trabalho quase escravo. Em outras palavras, os pecados têm suas equivalências.

Eu não quero cair num relativismo excessivo. Eu considero que as democracias liberais têm regras e direitos humanos melhores do que as dos sistemas autoritários. Portanto eu não estou colocando os dois sistemas numa mesma bandeja. No liberalismo democrático, há melhores remédios contra a opressão do que nos regimes autoritários unipartidários. Mas nos dois casos há vulnerabilidades.
 
Numa eventual vitória de Biden, esse enfrentamento com a China deve continuar, não?
 
Sim, é uma questão nacional. Os Estados Unidos se deram conta de que a China não é mais uma grande potência acessória, mas um rival que vai se qualificando para disputar a supremacia mundial com eles. Portanto, a China chegou lá. E ao chegar lá, desafia a potência hegemônica, que são os Estados Unidos. Os Estados Unidos se acostumaram desde o fim da Segunda Guerra a ter uma posição de supremacia.

Da queda do Muro de Berlim até a ascensão da China, os Estados Unidos viveram um momento que eu chamo de unilateralismo. O mundo era deles, não havia ninguém que os desafiasse. O Brasil tende a navegar em águas complicadas. O que seria simples? Aderir a Washington e fazer uma política caudatária ou aderir inteiramente a Pequim. Mas o Brasil não tem essa vocação, o Brasil tem que encontrar o seu caminho.
 
 
Ou seja, para decidir o 5G, seria mais prudente esperar a eleição americana passar?
 
Creio que sim. Primeiro, porque a eleição está muito próxima. E também não há uma urgência para que tenhamos de tomar uma decisão nas próximas semanas. Mas a verdade é que a China não é uma questão inventada pela administração Trump. O 5G é simbólico, como já foi em outra época a energia atômica, como já foi o corredor da Polônia. De tempos em tempos a história encontra uma crise que é o símbolo daquele momento. O que me surpreendeu não foi que os Estados Unidos e a China se enfrentassem. Foi o tempo que se deu, mais veloz do que eu supus. Eu imaginei que o antigo jogo duraria uns 10 ou 20 anos mais.             
 
Dá ou não para deixar a Huawei de fora?
 
Há vários caminhos possíveis. Eu creio que a empresa Huawei está um pouco marcada agora. Você pode mudar o nome, criar subsidiárias, criar outras empresas com sedes em outros países. Você tem uma série de astúcias. O comércio internacional é feito de uma série de manobras.

Eu não quero sugerir qual vai ser o caminho. Os Estados Unidos estão agora num jogo eleitoral. Haverá um paroxismo nacionalista nos EUA. O Alibaba, a TikTok, a Huawei… O vírus [covid-19] é “chinês”. Ou seja, os Estados Unidos demonizaram a China. De modo que no momento, como dizia um grande diplomata francês, “é urgente esperar.”

Ou, para usar uma expressão brasileira, vamos empurrar com a barriga. Vamos esperar até novembro. Não temos que tomar nenhuma decisão crucial até novembro. Vamos ver como conseguimos criar uma acomodação possível, pois os Estados Unidos são muito importantes para o Brasil. Sou um admirador dos Estados Unidos. Acredito que entre nós e eles há muitas afinidades. É confortável ser parte do mundo ocidental. Agora, a China se tornou de extrema importância para o Brasil. Como se dizia antigamente, a salvação da lavoura é a China.
 
E o risco de espionagem, existe ou não?
 
A informação é sempre vulnerável ao ataque de quem a fornece. Isso é uma verdade. Mas é uma verdade ecumênica, se aplica a todos. Vale para a China, Estados Unidos, Alemanha… Quem detém a tecnologia tenta extrair dela as informações que são do seu interesse nacional. Portanto não há ingenuidade, o risco é universal. Mas o Brasil não tem nenhuma vulnerabilidade tão grande, não está em nenhuma jogada estratégico-militar que faça dele um país atraente para espionagem estratégica ou militar.
 
Taiwan e Índia começam a se beneficiar do que os especialistas chamam de “desconexão” das economias americana e chinesa. O Brasil também pode se beneficiar?
 
Não vejo o Brasil com as ferramentas, os instrumentos tecnológicos para se aproveitar dessa situação. O Brasil está se especializando cada vez mais em ser o grande supridor de alimentos no mundo. A Índia e a China são nossos mercados naturais. 
 
É admirável a produtividade do agrobusiness, mas ao mesmo tempo, não é triste o Brasil se firmar como um país agrário?
 
Nós ficamos com um certo complexo nos anos 1930 de que a indústria é o futuro e que a agricultura é o passado. Muitas das maiores economias do mundo são mais agrícolas do que industriais. A Austrália é mais agrícola do que industrial, o Canadá é mais agrícola do que industrial, os próprios Estados Unidos são uma imensa potência agropecuária. A agricultura hoje não é uma atividade primitiva. Pelo contrário, há mais tecnologia hoje em produzir uma vaca do que produzir aço. A genética animal, a tecnologia dos alimentos, a ideia da produtividade na lavoura e na pecuária requerem mais tecnologia do que no aço. Numa simplificação, o aço é produzido mais ou menos da mesma forma do que há dois mil anos.
 
E o Brasil está provando isso, com crescentes exportações de carne, mesmo na pandemia…
 
O Brasil tem hoje uma agricultura de alta sofisticação. Você vai a uma fazenda brasileira é uma coisa extraordinária. Há um pedaço do Brasil que deu certo. Somos uma superpotência agropecuária e também em commodities.

Nós somos críticos com o Brasil tantas vezes… O SUS me surpreendeu tanto nessa pandemia. O Brasil tem um sistema de saúde melhor do que eu imaginei. Nós temos uma ministra da agricultura extraordinária. A infraestrutura vai bem. Olha, sempre que você acha que o Brasil vai bem, ele te decepciona. Sempre que você acha que vai mal, te surpreende. O Brasil é um lugar complicado. 

Voltando à questão do 5G. O Brasil abrir mão da China é algo inconcebível. Achar que o Brasil vai desafiar os Estados Unidos também é inconcebível. O Brasil vai ter que navegar agora com cautela. Já fizemos isso antes, nos anos 1930 e 1940, com a Alemanha e os Estados Unidos. O Brasil tem uma experiência para sobreviver a pressões. A ideia do Brasil desvinculado dos Estados Unidos é ingênua. A ideia de um Brasil desvinculado da China é ingênua. Então o Brasil vai ter que usar na diplomacia algo que não está acostumado a fazer de uns tempos para cá: a cabeça.