Alguns gestores de investimentos estão questionando a forma como a Anbima — entidade que representa bancos e gestoras — está precificando títulos de dívida.
A discussão afeta diretamente os fundos de crédito privado — através dos quais seguradoras, fundos de pensão e fundos de varejo financiam bilhões de reais para as empresas — bem como o mercado de debêntures, que já chega a 550 bilhões de reais.
O processo pelo qual os gestores profissionais atribuem um preço aos títulos que carregam em suas carteiras deveria ser uma ciência — mas às vezes flerta com a arte.
É uma tarefa tornada ainda mais complexa pela pouca liquidez do mercado de dívida local e a baixa pulverização dos títulos, frequentemente encarteirados por grandes investidores, que os carregam até o vencimento.
Hoje, a coisa funciona assim: a Anbima recebe diariamente de seus membros preços indicativos para debêntures em circulação no mercado. De posse desses preços e de olho no pregão feito pelas corretoras (o chamado ‘call do mercado’), a Anbima publica o preço oficial para um número seleto de debêntures em circulação. Este é o preço usado para avaliar — ou ‘marcar a mercado’ — as cotas dos fundos de crédito que detêm esses papeis.
Em discussões internas no comitê de precificação da Anbima, alguns gestores têm cobrado de forma veemente que os preços oficiais reflitam mais a realidade do mercado — que, segundo eles, é pior do que os preços publicados. O debate é acalorado. Para uns, o sistema da Anbima é falho porque a amostragem de preços é pequena. Para outros, os preços da Anbima tendem a ser inflados porque os gestores dos grandes bancos têm um viés: como eles costumam carregar grandes posições até o vencimento, fazem de tudo para evitar marcações para baixo (ou, simplesmente, grandes oscilações nas cotas).
As reclamações partem principalmente de gestores de instituições internacionais como o BNP Paribas, Citigroup, JP Morgan e Western Asset Management, mas também de gestores locais.
Cobrados por suas áreas de ‘compliance’, alguns destes gestores frequentemente não usam os preços oficiais da Anbima e fazem marcações próprias, usando preços mais conservadores.
Uma precificação falha — que não reflete os preços de mercado — pode trazer prejuízos aos cotistas dos fundos.
Imagine, por exemplo, um fundo de crédito que tenha na carteira uma debênture da Vale ‘marcada’ a 100% de seu valor de face, mas pela qual o mercado pague apenas 98% do valor de face. Quando o gestor vender o papel, essa diferença de 2% aparecerá na cota, mas nem todos os cotistas sofrerão da mesma forma. “Isso favorece os clientes que fazem resgate antes e prejudica os que sacam por último, porque o gestor pode simplesmente usar parte do caixa do fundo para honrar o saque do primeiro, e quando chegar a vez dos demais cotistas, vai ter que vender o título com aquele desconto,” diz um gestor. “É por isso que [a precificação] é tão sensível.”
Gestores que não fazem parte do comitê da Anbima dizem que há evidência empírica de que a precificação oficial pode ser leniente. “No ano passado, que foi um ano ruim para as empresas, a gente não viu uma abertura de taxas [preços oficiais menores] compatível com o cenário”, diz um gestor.
A opacidade de preços é um problema quase tão antigo quanto o próprio mercado de crédito, mas torna-se mais saliente em momentos de crise. Primeiro, porque é durante as crises que o mercado finalmente diferencia o crédito bom do ruim. “Quando a economia vai bem, tanto as empresas boas quanto as não tão boas pagam suas dívidas,” diz um gestor. “Mas quando a maré baixa, você vê quem está nu.” Em segundo lugar, é durante as crises que os fundos de crédito sofrem mais saques, evidenciando o ‘gap’ entre um preço artificial e os preços de mercado.
O que fez o problema voltar à tona recentemente foi o chamado ‘evento BTG’ — a prisão do banqueiro André Esteves em 25 de novembro — que forçou vendas de papeis num mercado ilíquido e de forma desorganizada, evidenciando a discrepância nos preços.
A Anbima parece entender que o problema existe. De dezembro para cá, criou um acompanhamento semanal de preços sobre os quais há suspeita de distorção, tem monitorado mais de perto os preços indicativos que se descolam dos preços de mercado, e regularmente manda emails cobrando as discrepâncias. “A Anbima tem sido mais rigorosa, particularmente em dezembro e janeiro,” diz um gestor.
Mas algumas divergências continuam. Enquanto os títulos da Vale com vencimento em 2022 negociam lá fora a 79% do valor de face, no Brasil eles estão marcados pela Anbima a 100% do valor. Da mesma forma, títulos da Sabesp estão negociando lá fora a 93,5% do valor de face, mas, pela tabela Anbima, valeriam 98%.
A comparação entre títulos que circulam no mercado internacional — denominados em dólar — e os que circulam no Brasil, em reais, não é necessariamente perfeita. Níveis diferentes de liquidez e pulverização dos títulos são uma explicação plausível para preços distintos em mercados diferentes.
Ainda assim, “como esse mercado é ilíquido, você fica pendurado nessa marcação arbitrária, então é natural que haja uma pressão de alguns gestores para que isso seja mais parametrizado, para que que haja mais critério. Muitas vezes, você tem que achar títulos comparáveis para chegar num número justo, e isso vale para cima e para baixo.”
Participantes do mercado dizem que o monitoramento mais intenso por parte da Anbima está tendo um efeito colateral benéfico: ajudou a aumentar a liquidez do mercado nos últimos meses. “O fato é que não dá pra manipular mercado,” diz uma fonte. “Você pode até tentar por algum tempo, mas no final o fluxo prevalece.”