De um tempo pra cá, voltei a gostar de algo que já havia esquecido há muito: relógios. Não qualquer relógio, mas aqueles de ponteiros mesmo, mecânicos. É um gosto que, a essa altura da vida, me gera algumas dúvidas. Por um lado, ele encontra suas origens nas imagens que eu tinha dos relógios e dos adultos que os usavam nos anos 70 e 80. Àquela altura havia ainda uma mística em torno dessas peças. Por outro, hoje quase não se usa mais relógio, menos ainda daqueles que descrevi – talvez seja uma afetação boba.
Mas o fato é que o mundo da relojoaria tem mais a oferecer do que dão a entender os relógios que frequentam os pulsos de celebridades, todos meio parecidos (e sempre gigantes). Na verdade, nos últimos anos o mercado de relógios vintage – peças antigas, com um charme de época – cresceu significativamente, inclusive impulsionado pelas redes sociais. Além disso, por todo lado têm aparecido as chamadas microbrands, pequenas marcas focadas em qualidade e design diferenciado.
Antes de mais nada, esse ressurgimento da relojoaria clássica é povoado por histórias. No final das contas, essa é, ao menos para mim, a maior razão para gostar de relógios: saber que por trás de cada um estão os padrões estéticos de um período, a evolução técnica pela qual se passava. E é assim que nascem alguns ícones.
Um dos nomes que voltou a frequentar esse misterioso panteão da relojoaria é a Universal Geneve. A marca andava esquecida há algum tempo, associada a tantas outras que sucumbiram à chegada dos relógios quartz na década de 70 (que praticamente devastou a indústria suíça).
Até que, em dezembro de 2023, em um movimento ousado, a Breitling comprou a UG. Os primeiros relógios devem sair em 2026 e, pelo que se divulgou, com eles a Breitling quer começar a ocupar um espaço no primeiro escalão da relojoaria global.
E aí vem a história.
Criada em 1894, a UG começou a ganhar respeitabilidade a partir dos anos 30, com a produção de cronógrafos de precisão para uso aeronáutico ou militar (até o exército brasileiro comprava, a partir de um dado momento). Esses cronógrafos, nas suas diversas linhas, seguiram produzidos até o fim. E a despeito de suas qualidades técnicas e do estilo imbatível – que os tornam peças disputadas entre colecionadores – não creio que serão eles os ressuscitados pela Breitling (que afinal é especializada justamente em cronógrafos).
Ao lado dos cronógrafos, a UG também produzia os chamados dress watches, mais formais. E aqui a régua era tão alta que a sua principal distribuidora na França era a Hermès. Nos Estados Unidos, a UG era distribuída pelo mesmo distribuidor da Patek Philippe. Já naquela época a UG começou a ser conhecida como “le couturier de la montre” (o estilista de relógios).
O verdadeiro divisor de águas, porém, veio em 1954, com um relógio projetado especialmente para a Scandinavian Airlines, o Polerouter.
A SAS estava para iniciar os voos internacionais feitos pelo polo norte, que reduziriam em muito o tempo das viagens. Para isso se demandava um relógio especial, capaz de suportar mudanças de pressão, altitude e outros desafios. Além da qualidade técnica, o Polerouter teve um outro grande trunfo: ele foi o primeiro trabalho de um jovem designer de 23 anos chamado Gerald Genta (mais tarde o responsável pelo Omega C-Shape e pelos famosos Audemars Piguet Royal Oak e Patek Philippe Nautilus, dentre outros). Nasce, assim, o mais icônico dos tool watches.
Com uma combinação única de funcionalidade e apuro estético, o Polerouter tornou-se um símbolo da era da aviação (suas propagandas são o mais puro retrato do período), daqueles anos de afluência.
Na década de 60, o mundo mudou – ficou mais irreverente e mais esportivo. Tudo tinha que ter uma cara jovem. A UG, antes de outras marcas, lançou modelos que respondiam às demandas desse novo tempo, e esbanjando qualidade técnica.
Em 1965, também com o desenho inicial de Genta, ela lançou a linha White Shadow, com as máquinas mais finas do mercado. Movimentos ultrafinos, formatos atípicos (quadrados, tonneau…) e mostradores diferenciados, em tecido, olho de tigre, padrões mais psicodélicos – tudo isso ocupou um espaço cada vez maior.
Nessa época, pelos mesmos motivos, o Polerouter ganhou novas versões, e os cronógrafos foram repaginados. Viraram referência aqueles usados por Eric Clapton (até hoje chamado pelo nome do músico e, na versão com cores invertidas, de “Evil Clapton”) e pela modelo finlandesa Nina Rindt (o “Nina Rindt” e sua contrapartida, o “Evil Nina”).
Tudo isso mudou com os anos 70 e a famigerada chegada do quartz. Em um mundo de acelerada inovação tecnológica, demanda por precisão, e sobretudo preços baixos, o mundo relojoeiro se transformou, e muitas marcas tradicionais desapareceram. A UG se rendeu à inovação antes das outras grandes e, ainda assim, não se recuperou do golpe.
No fim dos anos 80 e começo dos 90, ela até lançou alguns belos cronógrafos, remetendo aos tempos áureos. Depois, a marca foi vendida, os maquinários também, e ela foi esquecida.
Isso até a compra em 2023 pela Breitling, que, nos últimos anos, tem tomado importantes decisões de posicionamento de mercado. Mas o que significa comprar uma marca já há algum tempo parada, com cada vez menos apelo para as novas gerações? Georges Kern, o CEO da Breitling, não é famoso por errar. Relógios menores, que se distanciam daquelas coisas espalhafatosas que se têm visto nos últimos anos, têm começado a ser mais demandados. De uma hora pra outra, o mercado começou a falar em quiet luxury para tudo – e talvez não haja marca mais adequada que a UG para isto.
Além disso, eu gosto de inventar as minhas próprias razões, que são mais nostálgicas do que outra coisa. Gosto de pensar nessa história toda, no que ela mostra das últimas décadas, de quem usou ou deixou de usar. E num mundo que, mesmo com todos os defeitos, tinha seus méritos.
Se não for por isso, a relojoaria é sobretudo técnica, e disso eu não entendo. Se não for por essas histórias, ela talvez seja ostentação, algo feito para atender demandas de mercado que sequer sabemos bem onde nascem – e isso é tudo o que não vale a pena.
Otavio Yazbek é sócio da Yazbek Advogados.