Se você tivesse uma varinha mágica e pudesse remodelar instantaneamente o desenho institucional no Brasil, em que área você atuaria: no mercado de crédito, no mercado de trabalho ou no sistema tributário?

Essa foi a provocação inicial de Daniel Goldberg – o secretário de Direito Econômico do Ministério da Justiça e fundador da Lumina Capital Management – no debate Política Econômica e Desenho Institucional, que Goldberg mediou tendo como convidados os economistas Persio Arida e João Manoel Pinho de Mello.

Ao longo de mais de uma hora, a conversa passou por temas como judicialização, insegurança jurídica, regulação do sistema financeiro, equilíbrio entre os Poderes e os efeitos do atual arcabouço institucional sobre a economia.

Daniel Goldberg

O consenso é que, apesar da safra de reformas recentes, ainda há muito a fazer para destravar o mercado de capitais e o PIB brasileiros.

Persio, o ex-presidente do Banco Central e do BNDES e um dos ‘pais do Real,’ lembrou que a Constituição de 1988 garantiu muitos direitos e prerrogativas, “expandiu o tamanho do Estado” – e que isso teve prós e contras.

“Todos os lobbies do País deram um jeito de acrescentar algo na Constituição,” disse Persio. “É uma Constituição estranha de extensa. Reflete aquele momento.”

Mas o que aconteceu no Brasil de lá para cá, em sua opinião, foi um lento “aprendizado dos usos políticos da Constituição.”

Persio citou o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, dizendo que “a Constituição foi generosa no número de agentes que podiam arguir constitucionalidade de qualquer coisa” – e o STF não pode se recusar a decidir sobre se uma determinada lei é constitucional ou não.

“Resultado: a sociedade foi aprendendo,” disse Persio. “Quase qualquer coisa pode, portanto, ter uma dimensão constitucional e ser objeto de uma ação ou pedido de constitucionalidade.”

Segundo ele, o Executivo “aprendeu” que se enviar uma lei ao Congresso, ela será questionada. “Então é melhor mandar uma PEC, uma Proposta de Emenda Constitucional,” disse Persio.

E assim as PECs se proliferaram, mas aprová-las exige uma enorme ginástica política – um quórum de 3/5 nas duas Casas – o que trava a agenda de reformas e desvirtua muitos projetos.

No Plano Real, disse Persio, foi possível criar uma nova moeda e alterar contratos sem a necessidade de PEC.

“Hoje em dia, uma reforma monetária da dimensão do Plano Real que não seja questionada no Supremo seria impossível,” afirmou. “Aos poucos, houve um processo de judicialização de quase tudo no Supremo – e nossa Constituição é como o Universo: está em constante expansão, todo ano tem uma PEC nova.”

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Para Persio, isso enfraqueceu o Executivo. “Criamos a obrigação de o Governo legislar através de PECs,” disse.

Por essas razões, Persio disse que não daria prioridade a nenhuma das três reformas propostas por Daniel.

“Começaria com uma emenda geral de desconstitucionalização,” afirmou Persio. “De tudo que não seja direito fundamental.”

João Manoel – ex-diretor do BC, um dos ‘pais do Pix’ e hoje sócio do Opportunity – lembrou que o Governo Temer, do qual fez parte atuando na Fazenda, conseguiu aprovar diversas reformas relevantes a despeito das dificuldades elencadas por Persio.

“Havia um diagnóstico de que, no mercado de capitais, a alocação do capital era extremamente distorcida por mecanismos de poupança forçada,” disse.

Em sua avaliação, a grande mudança – “o mais próximo de uma bala de prata” para incentivar o mercado – foi o fim dos juros subsidiados da antiga TJLP dos financiamentos do BNDES, junto com a criação da nova taxa de referência, a TLP.

A propósito das reformas aprovadas por Temer, Daniel citou que um dos pilares da nova legislação trabalhista, que era o pagamento de sucumbência pelas pessoas que ingressam com processo, foi derrubado recentemente pelo STF.

“Todo mundo comemorou a reforma, a produtividade das empresas iria crescer, e agora tivemos uma decisão [do Supremo] e dá para ver bonitinho um ‘V,’ com o número de litígios subindo novamente,” disse.

“Concordando com o Persio, o arranjo político, que normalmente envolveria uma discussão apenas entre Parlamento e Executivo, envolveu o Judiciário,” disse Daniel. “Não acho que tenha sido por acaso.”

João Manoel disse que daria prioridade à reforma tributária – isso mesmo depois do texto recém-aprovado. “O mato é alto ainda,” disse.

Para o economista, muito do capital humano brasileiro – e da melhor qualidade – é “usado para litigar com o Estado.”

“A despeito da reforma – um avanço tremendo aprovado pelo Governo do Presidente Lula – ainda vai sobrar uma estrutura tributária extremamente inchada, com um nível de litígio enorme, que suga um recurso muito escasso no Brasil,” disse ele.

Comentando a reforma tributária, Daniel disse temer “os efeitos de segunda ordem.”

Em sua avaliação, para “tornar o Brasil eficiente para a indústria, que hoje em dia é um pedaço pequeno do PIB,” haverá um grande aumento da alíquota efetiva para os serviços, que respondem por 70% do PIB.

“Foi uma pancada, por conta das múltiplas exceções que o Congresso impôs no processo de tramitação,” afirmou.

Ainda segundo Daniel, o Brasil passou por uma redução expressiva da informalidade nos últimos 20 anos, mas agora corre o risco de dar um passo para trás, com os serviços pagando um “IVA de 28%, sem possibilidade de deduzir trabalho,” que representa boa parte dos custos das empresas desse setor.

Insegurança jurídica e juros

Daniel perguntou a Persio se ele ainda considera a incerteza jurisdicional a principal razão para os juros serem elevados no País, tema que o economista analisou em um artigo de 2005, escrito com Edmar Bacha e André Lara Resende (Credit, interest, and jurisdictional uncertainty: conjectures on the case of Brazil).

Muitos economistas acreditam que a raiz da discrepância brasileira seja o desequilíbrio fiscal, mas Persio mantém a opinião de que a insegurança jurídica – ou mais precisamente a ‘incerteza jurisdicional’ – representa a maior anomalia nacional.

“A dívida brasileira é alta, sem dúvida. Nós estamos com um desempenho fiscal sério e grave, sem a menor dúvida,” disse Persio. “Mas nas comparações internacionais tem um erro de medida. Parte da dívida do Tesouro serve de lastro.”

Com as operações compromissadas do Banco Central, o passivo fica nas contas do BC e do Tesouro – sem isso, “a dívida do Tesouro cairia 20 pontos,” disse.

“A questão da incerteza jurisdicional vai além: tem o viés, muitas vezes, do Judiciário em favor do devedor, tem o grau de litigância, tem incertezas sobre regras,” disse Persio.

A ideia de analisar essa incerteza, lembrou o economista, surgiu da constatação de que um título brasileiro emitido no exterior paga quase sempre juros mais baixos do que papéis semelhantes emitidos no País. “O que explica essa diferença? Tem um problema aí, e acho que está associado a essa incerteza institucional.”

Outro assunto que entrou em discussão foi o Fundo Garantidor de Crédito.

Daniel afirmou que o FGC, ao garantir depósitos, acaba tendo a função de reduzir as barreiras de entrada para novos bancos.

“Aí surge a discussão: qual é o jeito adequado de cobrar por esse seguro? Uma das propostas que ouvi é manter a garantia, mas, se o banco oferece 200% do CDI, ou se oferece algo acima de 100% do CDI, ele que pague a conta dessa diferença além do CDI,” disse Daniel. “Porque, obviamente, quando oferecem 200% do CDI e esse lucro extraordinário é garantido pelo FGC, estão capturando implicitamente um subsídio do sistema – e não era para isso que ele foi previsto originalmente.”

Para João Manoel, “o segurador do depósito não devia ser o emprestador de última instância”, mas o FGC tem ocupado a função que deveria ser do BC.

“Nós não temos um arcabouço muito bem estabelecido de resolução bancária, que nos diga em que momento o dinheiro público pode entrar, em quais condições,” disse o economista.

Os servidores do BC se sentem pouco protegidos para fazer intervenções, e suas ações podem acabar sendo contestadas pelos órgãos de controle, sobretudo quando há perdas vultosas envolvidas.

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Persio lembrou que em seus tempos de BC os funcionários resistiam a assinar empréstimos para instituições. Além disso, os próprios bancos em apuros evitavam acessar as linhas de redesconto, porque a informação poderia vazar, desencadeando uma corrida bancária.

“Como o mecanismo não funcionava, criou-se o FGC”, disse Persio. “Mas ele virou alguma outra coisa no meio do caminho; passou a ser um incentivo a novos entrantes. Como tal, ele foi mal regulamentado.”

Daniel quis saber então o que poderia ser feito para aumentar a eficácia da política monetária no Brasil e diminuir a indexação.

Para João Manoel, ainda há “muitos mecanismos de poupança forçada,” entre eles o FGTS.

“São fatores amortecedores da transmissão da política monetária,” disse. “Mas a transmissão da política monetária é uma função, basicamente, de credibilidade do Banco Central. Se o BC é crível, ele consegue fazer o serviço melhor e com menos dor.”

Persio, ao responder sobre o fim da indexação, citou Guimarães Rosa: “Ela não vai morrer de ‘morte matada,’ vai ser morte de ‘morte morrida.’ Só que a ‘morte morrida’ é lenta.”

O economista fez então uma comparação com o Chile, país que tinha a mesma renda per capita do Brasil em 1970 e que hoje é quase 70% mais rico.

“A diferença é que o Chile fez antes todas as reformas que o Brasil está fazendo. Todas. Previdência, mercado de capitais,” disse Persio.

Apesar de todas essas reformas, notou Persio, o governo chileno até hoje emite títulos de longo prazo indexados – ainda que com taxas muito menores do que as brasileiras.

“É difícil imaginar o momento em que nós, no Brasil, seremos capazes de lançar um título nominal de 30 anos,” afirmou. “Nem deveria, porque, na verdade, o spread seria tão grande que não compensaria.”

Para Persio, a indexação vai desaparecer lentamente, na medida em que o País conquistar credibilidade no longo prazo.

“O exemplo chileno, que é um país muito avançado nas reformas, não permite uma leitura muito encorajadora,” disse. “Vai demorar muito mais tempo do que todo mundo imaginava.”