A editora Record está relançando a obra do maior poeta brasileiro moderno, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987).
Os primeiros quatro livros saíram em abril: Alguma Poesia (1930), sua coletânea de estreia, próxima ao modernismo de 1922; Sentimento do Mundo (1940), em que ele começa a incorporar certo engajamento político; Claro Enigma (1951), que representa uma virada para formas poéticas mais tradicionais; e a Antologia Poética (1962) organizada pelo próprio autor.
Trata-se de um retorno à casa: a Record foi a última editora com a qual Drummond assinou contrato, três anos antes da morte, e o grupo editorial detém hoje o selo José Olympio, que publicou o corpo principal da obra drummondiana. As novas edições trazem posfácios assinados por personalidades que não estão tão associadas à crítica literária (destaque para o belo e muito pessoal texto da cantora Zélia Duncan em Antologia).
Mas haverá novidade aqui? Estamos falando de clássicos que nunca estiveram fora de circulação — tanto que ainda se encontram nas livrarias as edições da Companhia das Letras, que no ano passado desistiu da obra de Drummond por não concordar com os termos de renovação pedidos pelos herdeiros do poeta.
Pois há, sim, novidade em Drummond.
Na conhecida fórmula do poeta americano Ezra Pound, literatura é news that stay news — novidade que permanece novidade. Em uma produção poética inquieta e diversa que atravessou seis décadas, Drummond cristalizou em verso os impasses do seu tempo, que em boa parte segue sendo o nosso tempo.
Na lista abaixo, aparecem cinco temas prementes de hoje sobre os quais o poeta ainda lança uma luz única.
1 – A GUERRA DA UCRÂNIA
“Aqui se chamava / e se chamará sempre Stalingrado”, diz Drummond em Telegrama de Moscou. A história desmentiu esses versos: em 1961, Stalingrado, que até 1925 se chamava Tsarítsin, mudou mais uma vez de nome, para Volgogrado.
Telegrama de Moscou faz parte de um conjunto de seis poemas de A Rosa do Povo (1945) nos quais Drummond canta um futuro mundo socialista e exalta a resistência soviética ao invasor nazista. Nesse núcleo partidário, ele emprega uma linguagem triunfal que nunca lhe foi própria. “A grande cidade do amanhã erguerá sua Ordem”, diz o verso final de Carta a Stalingrado, e está claro que essa Ordem, com maiúscula, é o comunismo em que Drummond então acreditava (e com o qual logo se desiludiria).
No entanto, não há traço de exaltação ao grande líder nesses poemas engajados (para contraste: em artigos de jornal publicados durante a Segunda Guerra, Jorge Amado embevecia-se com os bigodes de Stalin).
Os heróis de Carta a Stalingrado são os homens com “a face negra de pó e de pólvora” que surgem entre as ruínas da cidade — homens que naquele momento histórico mereciam a solidariedade dos poetas de Minas Gerais e do mundo. Em uma das mais cruentas batalhas da Segunda Guerra, a cidade impôs a derrota ao exército alemão em fevereiro de 1943, quatro meses antes da primeira publicação de Carta a Stalingrado, no jornal O Unitário, de Fortaleza.
Os crimes de Stalin e a opressão do regime comunista não anulam o fato de que, rompido o infame pacto para dividir a Polônia com Hitler, a União Soviética estava sob ataque de uma potência militar genocida que precisava ser detida pelo bem do mundo.
“A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais”, dizia Drummond a propósito da batalha de Stalingrado. Hoje, os jornais trazem os nomes de outras cidades bombardeadas. É uma ironia que, sob ataque da Rússia de Putin, a Ucrânia atualize os versos que Drummond dedicou a uma cidade russa. Pois tornou-se impossível não pensar em Mariupol, Chernihiv, Kharkiv ou Kiev quando lemos passagens assim:
Saber que resistes,
Que enquanto dormimos, comemos e trabalhamos, resistes.
Que quando abrirmos o jornal pela manhã teu nome (em ouro oculto) estará firme no alto da página.
Terá custado milhares de homens, tanques e aviões, mas valeu a pena.
2 – CHUVAS CATASTRÓFICAS
Em janeiro, um deslizamento de terra causado por chuvas intensas em Ouro Preto tragou dois prédios históricos, incluindo o belo Solar Baeta, do século XIX. Não houve vítimas porque a área estava isolada desde 2012, à espera de obras de contenção que nunca foram realizadas.
O episódio relembrou Morte das Casas de Ouro Preto, poema de Claro Enigma. Nele, Drummond lamenta que as casas “que viram morrer os homens / que viram fugir o ouro” se dissolvam sob a ação lenta e tenaz da “chuva monorrítmica”:
O chão começa a chamar
as formas estruturadas
faz tanto tempo. Convoca-as
a serem terra outra vez.
A sensibilidade de Drummond para o desaparecimento do passado talvez tenha sido afinada por seu trabalho, a partir de 1945, na Diretoria do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional (DPHAN, antecessor do hoje desprestigiado IPHAN), órgão no qual se aposentaria em 1962 depois de 35 anos no serviço público. Mas a metáfora da dissolução, por força das águas, da memória histórica (e afetiva) já aparecia bem antes, no primeiro grande poema de Drummond sobre a morte de seu pai: Viagem na Família, de José (1942).
O título do poema de Claro Enigma é significativo. Não fala da ruína, nem da destruição, mas sim da morte das casas. Na penúltima estrofe, a morte ganha uma potência ainda maior na imagem de uma ave de rapina: “A morte baixou dos ermos / gavião molhado”.
Em junho, o gavião desceu sobre as cidades do Grande Recife, onde as chuvas causaram deslizamentos. Mais de 120 pessoas morreram. E no tempo entre as catástrofes em Recife e Ouro Preto, as chuvas fizeram mais de 230 vítimas fatais em Petrópolis, outra cidade histórica. Lá, também se perdeu patrimônio cultural: milhares de livros da biblioteca pública foram destruídos pelas águas que inundaram a cidade. Casas, livros, pessoas: todos morrem vitimados pela chuva e pelo descaso.
3 – POLARIZAÇÃO POLÍTICA
“Este é tempo de partido, /tempo de homens partidos”, decretam os versos iniciais de Nosso Tempo, de A Rosa do Povo. O autor tinha seu partido então: no ano da publicação do livro, 1945, ele se integrou à equipe do Tribuna Popular, jornal do Partido Comunista Brasileiro. A experiência com a ortodoxia e a censura da “linha justa” afastaria Drummond do marxismo.
No final de Nosso Tempo, o poeta promete usar suas armas — palavras e intuições — para destruir o capitalismo. Mas mesmo nesse período de simpatizante do “partidão,” Drummond estava muito distante da estúpida “guerra cultural” que hoje divide esquerda e direita.
A poesia política de Drummond é atravessada por uma dúvida reticente e uma lúcida consciência de sua impotência como poeta e intelectual — uma impotência que se expressa de forma violenta em Elegia 1938, de Sentimento do Mundo, quando o poeta diz que seu coração aceita as injustiças do mundo porque não pode “sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan” (poesia é figuração: não interpretemos isso de forma literal).
Também em Sentimento do Mundo há uma curiosa peça poética em prosa — um único parágrafo denso de metáforas — que dramatiza a relação do poeta com a figura que a doutrina marxista elegeu como o agente da história: o operário.
Não se deixe enganar pelo lirismo ingênuo do título: O Operário e o Mar é uma delicada crítica da relação entre um intelectual de esquerda e o trabalhador que ele idealiza. Observando um operário que sai de seu turno na fábrica, o eu lírico busca despi-lo da imagem padronizada de que dele é feita “no conto, no drama, no discurso político” — isto é, no que a elite ociosa diz sobre o operariado.
Depois de reconhecer a distância que separa o poeta do operário, o poema encerra-se na esperança de que um dia exista compreensão genuína entre esses dois homens tão diversos. Mas então o operário já deixou de ser uma categoria sociológica para se tornar uma pessoa real e única.
Há aí uma preciosa lição de humildade discursiva que deveria ser reforçada na era do bate-boca em rede social. Quando tantos ocupam o Facebook e o Twitter para se arvorar como a voz vingadora de grupos excluídos ou desprezados — sejam estes negros e transgêneros ou conservadores e evangélicos — e para combater entidades demoníacas — a branquitude e a heteronormatividade, ou o marxismo cultural e o politicamente correto —, é recomendável lembrar de que posição social estamos falando. Sobretudo, torna-se obrigatório tentar compreender a posição do outro, quer o consideremos aliado ou adversário.
4 – INFORMAÇÃO E DESINFORMAÇÃO
Nos anos 1920, Drummond — que tinha um diploma de Farmácia mas nunca exerceu a profissão — trabalhou nos jornais Diário de Minas e Minas Gerais. A admiração que ele tinha pelo ofício do jornalista transparece em Poema do Jornal:
O fato ainda não acabou de acontecer
e já a mão nervosa do repórter
o transforma em notícia.
Pouco mais de duas décadas depois, o poema Contemplação no Banco traria essa constatação seca: “O jornal, que aí pousa, mente”. Não se esclarece que mentiras são essas publicadas pelo jornal que alguém jogou sobre um gramado de parque. De todo modo, a descrença nas notícias do dia se enquadra no difícil equilíbrio entre esperança e desilusão que atravessa esse poema (mais sobre ele adiante).
Drummond não conheceu a internet e sua difusão incomensurável de conhecimento mas também de desinformação. Não conviveu com o estrangeirismo “fake news”. Mas sua poesia carrega a percepção sensível de um bom leitor de notícias — um poeta que acompanhava a Guerra Civil na Espanha, que admirava Charles Chaplin, que se preocupava com a profusão das favelas no Rio de Janeiro e lamentava a degradação ambiental da Mata Atlântica.
E como se lida com tantos temas graves sobre os quais temos pouco poder de intervenção? Em uma passagem de A Flor e a Náusea, Drummond definiu de maneira sintética e precisa um fenômeno que hoje se tornou ainda mais avassalador: a sobrecarga de informação que nos soterra diariamente.
Eis os versos:
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.
A grande poesia pode ser um modo de não apenas soletrar o mundo, mas de lhe conferir algum precário sentido.
5 – PAÍS BLOQUEADO
No Meio do Caminho, que causou barulho nos meios letrados quando saiu na Revista de Antropofagia, em 1928, tornou-se o poema mais conhecido de Drummond. Já está lá a ideia fixa de um obstáculo difícil ou impossível de ultrapassar: “No meio do caminho tinha uma pedra”.
Em Áporo, de A Rosa do Povo, o obstáculo ganha dimensões nacionais:
O que fazer, exausto,
em país bloqueado,
enlace de noite
raiz e minério?
“País bloqueado” decerto alude ao Estado Novo de Getúlio Vargas, ao qual o poeta serviu na condição de chefe de gabinete do ministro da Educação e Saúde Pública, Gustavo Capanema. Mas a expressão não definirá ainda o país em que vivemos hoje?
O Brasil parece sempre reencontrar bloqueios que deveriam estar superados. Muitos sentem a eleição que se aproxima, embretada entre duas opções antagônicas e já esgotadas, como o prenúncio de mais um caminho cheio de pedras.
A lírica drummondiana não nos oferece rima ou solução para o enlace de bolsonarismo, petismo e Centrão. Mas talvez possa nos dar serenidade frente a dificuldades incontornáveis e incontroláveis.
Voltamos ao já citado Contemplação no Banco, poema que vem depois do desencanto de Drummond com o comunismo. Já no título há uma mudança de atitude: o poeta que em Sentimento do Mundo se engajava na criação coletiva de uma “vida futura” agora se retira da ação para a contemplação. Mas nem tudo mudou. Como em A Flor e a Náusea, ele aguarda o nascimento de uma flor:
Passarei a vida entoando uma flor, pois não sei cantar
nem a guerra, nem o amor cruel, nem os ódios organizados,
e olho para os pés dos homens, e cismo.
É uma flor estranha, que será também um homem, um retrato renovado do próprio poeta, agora dotado da habilidade de amar “contra a amargura da política”.
Do “chão batido e da relva pobre” junto a um banco de alameda pode nascer milagrosamente a superação do populismo, do golpismo, do negacionismo sanitário e econômico? Não, e nem é isso que o poema propõe. Contemplação no Banco convida a uma pausa para olhar além do que o jornal jogado no chão informa. Sem desespero e sem ilusão, talvez se possam vislumbrar perspectivas insuspeitas.
Sempre, porém, com o olho fixo no chão onde pisam os pés dos homens. Drummond nunca foi um nefelibata: sua poesia nos aproxima da realidade. O poeta mineiro jamais renunciou ao princípio enunciado em Os Ombros Suportam o Mundo, de Sentimento do Mundo:
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.