A eleição da primeira mulher negra para a Academia Brasileira de Letras, a escritora mineira Ana Maria Gonçalves, acelerou ainda mais as vendas de seu livro Um defeito de cor, que já era visto como um fenômeno da indústria editorial.

Nas primeiras horas depois do anúncio da nova imortal, em  10 de julho, o livro vendeu 2 mil exemplares, totalizando 5 mil nas duas primeiras semanas deste mês, segundo dados da editora do livro, a Record.

É uma marca impressionante, tratando-se de uma obra de 951 páginas em que Gonçalves narra 80 anos da vida de Kehinde, uma menina capturada no antigo reino africano do Daomé, o atual Benin, e traficada para o Brasil quando tinha sete anos.

Desde seu lançamento em 2006, Um defeito de cor já vendeu 180 mil exemplares e bateu a marca de 45 edições – algo inédito no Brasil, onde só obras clássicas em português chegaram a essa tiragem, e em períodos mais longos.

Em tempos de redes sociais e textos curtos, chama a atenção o sucesso de vendas do livro, cujas quase mil páginas rivalizam com as 628 de Os Sertões de Euclides da Cunha, ou as 568 de Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa. Ou mais do que as 800 da desafiadora A Montanha Mágica, de Thomas Mann.

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O livro tornou-se quase uma bandeira para o movimento de recuperação da memória africana no Brasil. Já foi parar no desfile das escolas de samba como o enredo da Portela no Carnaval de 2024. 

A autora descreve com crueza as atrocidades cometidas contra escravizados e escravizadas – e também na África, por guerreiros inimigos da família da protagonista.

Ana Maria Gonçalves é apresentada por ninguém menos que o escritor, caricaturista e dramaturgo Millôr Fernandes (1923-2012), que escreve na orelha que o livro “está entre os melhores que li em nossa bela língua eslava” – possivelmente uma brincadeira com a origem latina e mesclada do português.

Na página que publicava na revista Veja, em 2006, Millôr termina com o alerta: “Te cuida, Saramago!”, referência ao escritor português, falecido em 2010, que ganhou o Nobel de Literatura em 1998.

O aval de Millôr certamente motivou a Record, em tempos de aversão a risco pelas editoras, a bancar o volume de 1,2 kg.

A autora foi publicitária por 13 anos, largou a profissão e mudou-se para a Ilha de Itaparica, na Bahia, onde dedicou cinco anos para escrever a obra.

Naquele período, conta que foi fisgada pela leitura de Bahia de Todos os Santos, de Jorge Amado, como conta em seu prólogo, intitulado Serendipidades. É a palavra de origem inglesa (serendipity) que significa o acaso de se encontrar algo que não se procurava.

Ana Maria Gonçalves se inspira ainda na busca infrutífera de Luiz Gama (1830-1882) – o advogado ex-escravizado considerado precursor do Abolicionismo – pela mãe, Luiza Mahin, que teria participado de revoltas na Bahia.

O romance de Gonçalves faz o inverso. É a busca, igualmente frustrada, da mãe pelo filho.