Poucos dias atrás, em 17 de maio, o mundo do vinho celebrou o centenário de uma de suas figuras mais notáveis: May-Eliane de Lencquesaing.

Mãe de quatro filhos, avó de dez netos e uma referência incontornável na viticultura mundial, ela construiu um legado que atravessa continentes, safras e gerações – e, ao completar 100 anos, mantém o entusiasmo que a guiou desde o início.

Em 2002, após visitar o ilustre Château Pichon Longueville Comtesse de Lalande, tive o privilégio de conhecer May-Eliane no Brasil.

Foram três dias inesquecíveis ao seu lado, apresentando seus vinhos em encontros com enófilos apaixonados e culminando em uma memorável degustação vertical de cinco safras de seu Grand Vin. 

Recordo com nitidez a disputa emocionante entre dois de seus ícones, os Pichon Lalande 1985 e 1986, lado a lado. Naquela noite, o 1986 quase me levou aos céus.

Na última vez em que estivemos juntos, conversamos longamente sobre os preços astronômicos da safra de 2000. Com sua habitual elegância e uma dose de ironia sussurrada, ela me tranquilizou: “Fique tranquilo, pois nosso 2001 é tão espetacular quanto o 2000.”

As incríveis histórias de May-Eliane, que teve seu château invadido pelos nazistas durante a guerra, estão no livro Vinho e Guerra, do casal Kladstrup. Seus relatos são impressionantes.

“Nossa vida cotidiana era marcada por uma total falta das coisas básicas: pouco aquecimento, uma dieta muito restrita, sem açúcar, pouco pão, quase nenhuma carne, e a manteiga simplesmente não existia. Vivíamos de acordo com o ritmo das estações. Moíamos milho para fazer uma farinha grossa que servia de base para a maioria dos nossos alimentos. Torrávamos cevada para preparar um café artificial.”

May-Eliane nasceu em Bordeaux, em uma família ligada ao vinho. Seu pai, Edouard Miailhe, adquiriu com o irmão o Château Pichon Longueville Comtesse de Lalande no ano de seu nascimento. Apesar desta origem, sua trajetória profissional nos vinhedos só começaria décadas depois, após uma vida dedicada à família e ao papel de esposa de militar, tendo se mudado 15 vezes ao longo de 30 anos.

Foi somente em 1978 que uma herança inesperada se transformou em sua missão. Após uma partilha entre os irmãos decidida por sorteio, May-Eliane herdou o Château Pichon Longueville Comtesse de Lalande, um dos grandes châteaux de Pauillac, “a Meca do Vinho”. Naquele momento, para ela, herdar o château foi um desafio inesperado. Com a aposentadoria do marido, imaginava que poderia – enfim – desfrutar de um período de tranquilidade.

Diante de uma propriedade abandonada, sem aquecimento e com finanças frágeis, ela decidiu reagir. Já com mais de 50 anos, matriculou-se na Universidade de Bordeaux para estudar enologia, mudou-se com o marido para o château e passou a liderar pessoalmente a transformação do negócio.

Sob sua gestão, o Château Pichon Longueville Comtesse de Lalande passou de uma vinícola em crise a símbolo de excelência. Cresceu, ganhou notoriedade internacional e teve a qualidade de seus vinhos alçada ao topo da crítica, com destaque para a lendária safra de 1982, que recebeu 100 pontos de Robert Parker.

Em 1994, May-Eliane foi eleita Woman of the Year (o prêmio se chamava ‘Man of the Year’, e May-Eliane foi uma das únicas mulheres a recebê-lo) pela prestigiada revista Decanter, que a reconheceu como uma das personalidades mais influentes do mundo do vinho.

Durante mais de 30 anos à frente da vinícola, May-Eliane modernizou processos, formou equipes, promoveu o vinho francês ao redor do mundo e fortaleceu a reputação de Bordeaux nos mercados mais exigentes. Em 2006, aos 81 anos, vendeu a participação majoritária do château à família Rouzaud, do Champagne Louis Roederer. May-Eliane levou anos para tomar essa decisão, já que seus filhos não demonstravam interesse em continuar no mundo do vinho. Segundo ela, a escolha foi dolorosa.

A história, no entanto, não terminou com a venda. Pelo contrário, começou ali uma nova aventura e um novo legado. Em 2003, aos 78, May-Eliane fundou a Glenelly Estate, em Stellenbosch, na África do Sul, determinada a provar que era possível produzir vinhos de classe mundial em solo africano. Hoje a vinícola é administrada por seu neto, Nicolas Bureau, mas May-Eliane segue presente em cada detalhe. Seu vinho ícone, o Lady May, já figura entre os melhores do país, e é amplamente elogiado por críticos como Tim Atkin, que destaca sua coragem e visão ao apostar nos tintos de Stellenbosch antes de sua consagração.

Merece um enorme brinde esta mulher que atravessou a história com coragem, afeto e visão, e que, safra após safra, ainda ensina que envelhecer pode ser o ato mais fértil de todos.

Luiz Gastão Bolonhez é especialista em vinhos. Compartilha suas experiências no Instagram e é curador de vinhos nos leilões da Blombô.