A imagem de uma performance ganhou os jornais de todo o mundo na semana passada: dois artistas nus guardam a entrada estreita de uma sala expositiva, obrigando o visitante a passar espremido entre seus corpos.
Trata-se da performance Imponderabilia, originalmente realizada por Marina Abramovic e seu companheiro e artista Ulay em 1977 – e hoje reproduzida na retrospectiva da artista sérvia na Royal Academy de Londres, em cartaz até janeiro.
Artista conceitual há mais de 50 anos, Abramovic se auto intitula a “avó da performance”. Mais que isso, ela é um ícone do mundo da arte e uma pioneira em seu campo de trabalho, cativando uma ampla audiência (para um tipo de arte que não é normalmente das massas, nem do comércio) em obras que desafiam os limites do corpo e da mente, trazendo desconforto e dor.
Na arte de Abramovic, o corpo é a tela.
Hoje com 76 anos, a artista mora em Nova York, e recentemente sofreu uma embolia após uma cirurgia. Os médicos a proibiram de viajar de avião. Para não perder a inauguração em Londres, foi de navio. Nada parece pará-la; essa intensidade e coragem sem freios marcam tanto sua vida quanto seu trabalho.
Abramovic explicou que não poderia perder a abertura por ser “uma responsabilidade muito, muito grande porque, como se sabe, em 255 anos, não houve nenhuma artista mulher naquele espaço,” disse em uma entrevista, referindo-se ao fato da Royal Academy nunca ter feito um grande show de uma artista desde sua criação em 1768. (Um fato surpreendente para um país com tamanha influência cultural).
A exposição traz momentos-chave da carreira de Abramovic, passando por escultura, vídeo, instalação e performance. Membros do Instituto Marina Abramovic – criado por ela em 2007 para apoiar a nova geração de artistas de performance – vão reproduzir 4 dos trabalhos da artista.
Apesar de ter ganho um Leão de Ouro na Bienal de Veneza em 1997, Abramovic passou anos fora do radar – era a “artista dos artistas”.
Isso poderia ser verdade até hoje, mas em 2010, numa performance no MoMA que entrou para a história, a artista ficou por 3 meses sentada 7 horas/dia, sem comida ou água, com o olhar fixo, sem alterar sua expressão facial, em frente aos visitantes do museu ( mais de 1.600 pessoas sentaram na sua frente), surpreendendo tanto pela resiliência quanto pelo efeito catártico gerado em quem participava.
The Artist is Present a transformou – aos 60 anos de idade – na artista performática mais famosa do mundo (talvez a única nessa área que tenha alcançado tamanha dimensão), e com uma aura cult. Além da fama como artista, passou a ser uma espécie de guru sobre o autoconhecimento e experiências espirituais.
Em 2016, lançou o documentário Espaço Além – Marina Abramovic e o Brasil, dirigido por Marco Del Fiol, que acompanha sua viagem por mais de 6 mil quilômetros no País para encontrar guias espirituais e xamãs. As viagens aconteceram entre 2012 e 2015.
Além de procurar inspiração artística, ela buscava cura para o sofrimento causado pelo fim do relacionamento amoroso com o artista italiano Paolo Canevari.
Nessa linha, Abramovic começou na sequência o projeto de uma ópera multimídia chamada Seven Deaths. Com participação do ator Willem Dafoe, a ópera explora a dualidade feminina de força/fragilidade e a entrega desmedida ao amor, questões que estariam personificadas na vida da cantora lírica Maria Callas, com quem a artista se identifica em diversos aspectos.
“Como é possível que mulheres como Callas morram por amor?” Abramovic disse em uma entrevista. Callas sofreu um ataque do coração, que Abramovic considera ter sido um heartbreak literal em função de desilusões amorosas. “Como é possível nos apaixonarmos a ponto de nos perdermos de nós mesmas? É um belo tema que surgiu a partir da minha própria experiência.” (Seven Deaths será apresentada no English National Opera durante o mês de novembro, por ocasião da retrospectiva em cartaz na Royal Academy).
Com a fama, Abramovic extrapolou o circuito tradicional das artes: participou de uma performance de Jay Z na Pace Gallery, trabalhou com Lady Gaga e entrou no círculo da alta moda.
“Ela está em todo lugar, integra a lista de desfiles, festas e galas. Bem, isso é um teste de resiliência também,” disse certa vez o diretor de um museu, numa alusão às performances em que Abramovic testa os limites de sua resistência.
Apesar do status de superstar, Abramovic coleciona críticas. Quando fez 70 anos, escreveu um livro de memórias, Pelas Paredes; antes do lançamento, vazou um trecho em que ela comparava os aborígines aos dinossauros (ela passou seis meses com Ulay na Austrália) e os descrevia de forma preconceituosa; o trecho não constou do livro, e Abramovic disse foi retirado de contexto. Mas foi o suficiente para que as mídias sociais a devorassem. “Theracistispresent,” espetava uma hashtag.
Os jornalistas mais ácidos batem no que julgam ser um excesso de botox, procedimentos estéticos variados e o uso de marcas de luxo, questionando a busca espiritual acompanhada por artistas hollywoodianos e revistas de entretenimento. Parte dessas críticas estão inseridas no contexto de um mundo que não sabe lidar com o envelhecimento da mulher – um motivo de desmedida atenção da mídia. (O patrulhamento virou até piada de tão simplório: seria o botox a antítese do feminismo?)
Outra polêmica na vida da artista: seu ex-companheiro e parceiro artístico, Ulay, a processou alegando que não recebeu sua parte na venda de trabalhos conjuntos. A artista alega que foi o contrário, mas a corte holandesa decidiu a favor de Ulay, e Abramovic foi obrigada a pagar US$ 300 mil.
O momento em que Ulay se sentou em frente a Abramovic no átrio do MoMA entrou para a história. Em tese, a artista não sabia do encontro, apesar de muitos especularem que foi tudo orquestrado.
Quando Ulay se senta, Abramovic estende a mão por cima da mesa e segura as mãos dele, e os dois choram; ela tira a mão primeiro. A cena viralizou no YouTube com milhões de visualizações.
O documentário The Artist is Present acompanhou todo o processo da exposição no MoMA. O roteiro começa com imagens dos trabalhos conjuntos com Ulay e a chegada dele para a abertura da exposição. Ele admite que, comparado com a força de Abramovic, ele era preguiçoso.
O relacionamento acabou porque ele queria ter filhos, e ela queria se dedicar apenas à sua arte. A performance The Artist is Present é uma referência a um trabalho que eles fizeram juntos, chamado Nightsea Crossing, em que sentaram um em frente ao outro, olhando nos olhos, até que ele desistiu e se levantou. Abramovic disse em seu livro de memórias que nunca o perdoou por aquilo, e que aquela atitude foi o começo do fim do casal. Para ela, o problema em seus relacionamentos amorosos é que ela nunca encontrou um homem com a mesma resiliência que a sua.
“Gosto de pensar que sou três Marinas agora,” explica Abramovic no final do livro. “Existe a guerreira. A espiritual. E a ‘bullshit one’.”