Estamos num ciclo de recessão na geopolítica: o aparato institucional que os Estados Unidos criaram no ciclo anterior não reflete mais o novo equilíbrio de poder.
Ian Bremmer, o cientista político que fundou a Eurasia – talvez a consultoria política mais influente do mundo – batizou esta nova realidade de G-Zero, um mundo sem um líder global e repleto de riscos que não podem ser antecipados com clareza.
Agora há um novo equilíbrio de poder, envolvendo três ordens: militar, econômica e tecnológica.
Bremmer não acredita numa reedição da Guerra Fria – desta vez entre EUA e China – mas ressalta que os americanos, ao interferir no status quo de Taiwan com seus embargos tecnológicos, podem precipitar um conflito.
“A China considera Taiwan parte de seu território, mas os americanos estão dizendo que a TSMC não pode vender esses chips, os melhores chips, para a China,” diz Bremmer. “Os chineses não vão aceitar.”
Bremmer diz que o Brasil, pouco relevante do ponto de vista geopolítico em questões de segurança global, “é grande o suficiente para ter a capacidade de fazer negócios com todo mundo” e, por isso, pode ganhar espaço na economia mundial.
Segundo Bremmer, para a Casa Branca pouco importam as declarações de Lula sobre a Ucrânia, Venezuela ou o papel do dólar como moeda global. “Muito mais importante, para Joe Biden, é a política ambiental.”
Nesta conversa com o Brazil Journal, Bremmer analisa as consequências da crescente influência econômica e política da China – um país regido pelo “capitalismo de Estado” – e as ameaças da nova ordem tecnológica – comandada por big techs e manipulada por nações autoritárias.
Você lançou essa ideia do “G-Zero”, um mundo sem uma liderança global, há pouco mais de 10 anos. É um conceito ainda válido?
Acredito que sim. Minha suposição era que não estávamos lá ainda, mas estávamos a caminho.
Quando ocorre uma grande crise, digamos, a Segunda Guerra Mundial, o poder muda radicalmente. Antigas instituições colapsam. São criadas novas instituições, que se alinham com o novo equilíbrio de poder.
Os EUA saíram vitoriosos, criaram as instituições de Bretton Woods, o Banco Mundial e o FMI, tudo com o seu capital, suas prioridades, seus amigos.
Agora você vê todas essas instituições resplandecentes que representam um mundo que existia em 1945, nos anos 50, nos anos 60.
Com o tempo, a natureza do poder muda, mas as instituições são rígidas. Em algum momento, a lacuna se torna tão grande que acaba acontecendo uma recessão geopolítica.
Há ciclos de expansão e ciclos de queda na geopolítica, assim como na economia. Na geopolítica são ciclos mais longos e as pessoas não os reconhecem como tal.
Estamos em uma recessão geopolítica e por isso as instituições não refletem mais o equilíbrio de poder. Estão desmoronando.
Estamos vendo isso agora e estamos vendo a criação de novas instituições que refletem melhor um novo equilíbrio de poder.
Que instituições são essas?
Falei sobre isso em minha palestra no TED algumas semanas atrás. Essas novas instituições estão em três espaços diferentes.
Você tem uma ordem de segurança, dominada pelos EUA e seus aliados. Os EUA gastam mais do que os próximos 10 países juntos – e a maioria desses 10 países são aliados ou parceiros dos EUA.
Então os EUA são o único país que pode realmente projetar poder de segurança global, o que significa que a Otan está ficando mais forte e o G-7 está tendo mais conversas sobre segurança.
Existe uma ordem econômica, que é completamente multipolar. Não é unipolar. Você tem os chineses de um lado, os americanos do outro lado, os europeus do outro lado, e muitos outros países que estão dizendo que querem fazer negócios com todo mundo.
É algo bastante confuso, com instituições econômicas concorrentes ou que se sobrepõem umas sobre as outras. São organismos pouco eficientes.
Então, a novidade agora é que existe agora uma ordem digital. Os atores mais poderosos na ordem digital são empresas de tecnologia. Não são governos, mas não temos nenhuma instituição global para regular as empresas.
As empresas de tecnologia querem se autorregular. Os europeus estão tentando criar uma espécie de quadro regulatório para inteligência artificial. Os americanos estão atrás. Os chineses têm um nível de controle bastante forte. É tudo muito novo, não sabemos como será essa ordem.
Como, dentro desse seu modelo, você enquadra os eventos recentes envolvendo Rússia e a chamada Guerra Fria 2.0, entre China e os EUA?
Não acho que estejamos em uma Guerra Fria com a China. Biden não quer isso. A Europa não também quer.
Mas americanos e europeus falam em de-risking, reduzir a dependência em relação à China.
De-risking é um termo enganoso e pode ser algo perigoso. Reduzir o nível de interconexão econômica, por razões políticas, entre os EUA e a China, poderá na verdade aumentar as chances de um conflito, ao enfraquecer a interdependência entre os blocos.
De-risking é particularmente perigoso quando falamos de semicondutores. Há uma estratégia de contenção, com os americanos tentando manter os chineses atrasados na corrida tecnológica. Com isso, os EUA estão interferindo no status quo em Taiwan. Assim tornam mais provável uma disputa por Taiwan.
A China considera Taiwan parte de seu território, mas os americanos estão dizendo que a TSMC não pode vender esses chips, os melhores chips, para a China. Os chineses não vão aceitar.
Veremos também uma recessão na globalização?
G-Zero não representa o fim da globalização, mas o fato é que ninguém está conduzindo a globalização. Mas existem algumas áreas em que há riscos elevados envolvidos.
Temos uma guerra na Europa. Os russos se tornaram o maior e mais poderoso Estado sem princípios da história. Eles têm armas nucleares, têm armas biológicas, têm recursos para perpetrar crimes cibernéticos sem paralelos.
Quando você está em uma recessão geopolítica, os principais riscos são geopolíticos, não econômicos. É onde estamos agora.
Quando fundei a Eurasia, há 25 anos, havia coisas para eu falar sobre risco-país, mercados emergentes, esse tipo de coisa, mas o ambiente global não estava sendo prejudicado pela geopolítica. De jeito nenhum. O ambiente global estava sendo estabilizado pela geopolítica. Hoje, o maior risco global vem da geopolítica.
Qual é a posição do Brasil nesse quadro geopolítico?
Mencionei que existem três ordens mundiais, segurança, economia e tecnologia.
Do lado da segurança, o Brasil está à margem. Felizmente, a América do Sul não é uma área geopoliticamente interessante.
Quando se trata de economia, o Brasil está em uma posição muito boa. Tem um enorme mercado e as empresas querem ter acesso a isso.
O Brasil é grande o suficiente para ter a capacidade de fazer negócios com todo mundo. É fácil ter um bom relacionamento econômico com a Europa e com os EUA. É muito fácil para o Brasil trabalhar com a China, com o Japão e com os países do Golfo.
Há também a ordem digital, onde o Brasil tem um desempenho muito fraco. Tem algumas empresas de médio porte, mas nada como o visto na Índia, com empresas engajadas na transformação digital. É uma grande perda de oportunidade.
Como o governo de Joe Biden vê o Governo Lula? Acredita que exista uma certa decepção, porque teriam imaginado que seria possível manter uma relação mais construtiva?
A relação EUA-Brasil, seja com Trump ou Biden, seja com Bolsonaro ou Lula, tem sido estável. Não há uma grande diferença na orientação de nenhum dos países em relação ao outro, independentemente de quem seja o líder.
O fato de Lula estar transformando as políticas ambientais do Brasil é muito importante e certamente é visto por Joe Biden como algo bastante útil, mais importante para Biden do que o que Lula disse sobre a Venezuela, sobre a Rússia, a Ucrânia. Ou ainda o que Lula disse sobre o dólar americano como moeda de reserva. Muito mais importante, para Biden, é a política climática e ambiental.
Estamos vendo uma participação crescente da China na América Latina, e, como isso, os chineses ampliam sua influência política na região. Mas a China tem instituições bastante diferentes das ocidentais. Qual o impacto disso?
Vou encerrar falando de um outro que escrevi há uns 15 anos. Chama-se O Fim do Livre Mercado. O que escrevi foi que a China se tornaria a maior economia do mundo. Mas a China não é uma economia de livre mercado. É uma economia capitalista de Estado.
Quando a maior economia do mundo tem um capitalismo de Estado, isso muda a forma como o mercado global funciona.
É muito difícil renunciar a fazer negócios com a maior economia, então todos os países farão negócios com essa nova potência econômica e ela será o maior parceiro comercial de muitos países.
Isso já era óbvio há 15 anos. Mas você fará negócios com um país cujo sistema regulatório e estrutura legal são completamente diferentes. O Estado é o principal ator econômico. Isso leva os países a fazer mais política industrial, mudando a natureza da globalização.
Outro ponto importante é que não está claro se os sistemas democráticos são os mais estáveis e duradouros. Costumávamos pensar assim, mas não temos tanta certeza agora. Especialmente com o papel da tecnologia e vigilância cibernética, a revolução dos dados, um mundo no qual um pequeno número de atores em corporações e em governos autoritários possuem um poder enorme.
Eles podem monitorar o seu comportamento, podem usar algoritmos para incentivar certos comportamentos, dar-lhe cenouras ou porretes, dependendo de como você se comporta.
Pode ser que, nesse ambiente, os Estados autoritários tenham sistemas políticos mais fortes do que as democracias. Isso é muito perigoso. Isso é desumano, ruim para os cidadãos. Ainda não sabemos.