Sergio Bermudes – o advogado cuja verve e brilhantismo o colocaram no centro das maiores brigas societárias brasileiras, falências épicas e causas bilionárias – morreu hoje depois de complicações de saúde que o afligiam desde a pandemia.
Bermudes estava internado há sete meses no Copa Star, no Rio de Janeiro, e faleceu em consequência de uma sepsia respiratória. Ele tinha 79 anos.
O advogado – um ícone do Direito brasileiro ao longo dos últimos 50 anos – tinha saúde frágil desde que ficou entubado por cinco meses durante a pandemia. Em 2022, chegou a voltar a frequentar o escritório, mas a melhora durou pouco.
Nos últimos anos de vida, Bermudes teve duas grandes decepções. Perdeu completamente a audição por conta das sequelas da covid, e se frustrou ao não conseguir ser eleito para a Academia Brasileira de Letras, um sonho antigo.
Reverenciado e invejado nas mesmas proporções, Bermudes era um patrimônio nacional, um dos últimos sobreviventes do panteão dos grandes advogados num tempo em que a profissão tem se tornado mais formulaica e automática.
Dono de uma oratória envolvente e apenas 1,69 metro de altura, agigantava-se em defesas orais hipnotizantes, municiadas por um repertório que ia de Shakespeare aos filósofos gregos. Em vez de tentar encontrar a jurisprudência por palavras-chave, Bermudes partia do texto da lei para desenvolver sua tese.
“Quem sabe Teoria Geral do Direito pode saber tudo, [mas] quem não conhece Teoria Geral jamais saberá nada,” Bermudes costumava dizer aos estagiários (treinou mais de 10 mil). “Depois que se aprendem os elementos fundamentais, você vai descobrindo a fenomenologia jurídica e verifica que o Direito não é uma ciência exata. Ele é plástico.”

“O Direito dificilmente legisla para uma situação determinada. … Ele concebe, mas você tem que identificar a regra de Direito que regula determinada relação para fazer o que se chama de identificação da regra incidente.”
Andrea Zide, uma advogada no Rio que já advogou contra o escritório de Bermudes, disse que “advogados dessa estatura praticamente não existem mais — ele é uma dessas grandes formas que o mundo jogou fora.”
Mais recentemente, Bermudes representou a Vale nos desastres ambientais de Mariana e Brumadinho, e trabalhou para clientes como Bradesco, Citibank, Ambev e as grandes empreiteiras Odebrecht e Queiroz Galvão.
Sergio Bermudes nasceu em Cachoeiro de Itapemirim em 2 de outubro de 1946, filho de um ex-seminarista e de uma dona de casa.
Aos 12 anos, já trabalhava como office boy no pequeno escritório de seu pai, que advogava na cidade de 23 mil habitantes e adjacências. “Um homem brilhante, foi meu primeiro mestre,” disse sobre o pai numa entrevista ao Conjur.
Mudou-se para o Rio com 18 anos e formou-se pela Faculdade de Direito da então Universidade do Estado da Guanabara (1969); começou mas não concluiu seu doutorado. Estagiou brevemente no escritório de Oscar Saraiva, e pouco tempo depois abriu seu próprio escritório.
Outro grande mentor foi Dario de Almeida Magalhães, um dos maiores advogados brasileiros, que Bermudes reputava como “maior que Rui Barbosa”. “A maneira de peticionar, a maneira de expor, a graça literária, as imagens de que se valia, e o destemor” — tudo encantou o jovem Bermudes, que procurou emular o mestre.
Suas amizades incluíam membros das mais altas cortes, frequentemente suscitando acusações de conflitos de interesse.
Foi amigo e compadre de José Paulo Sepúlveda Pertence, o ex-procurador-geral da República e presidente do Supremo Tribunal Federal.
Com massa crítica de excelência, o escritório de Bermudes se tornou um celeiro de talentos – gerando spinoffs de sucesso ao longo do tempo.
Numa destas cisões, cerca de 15 advogados, incluindo dois co-fundadores, Daltro Campos Borges e Luiz Gomide, saíram do escritório e montaram uma nova banca, a Ferro, Castro Neves, Daltro & Gomide Advogados.
Outros ex-Bermudes incluem o Tepedino Berezowski & Poppa Advogados e o Tannuri Advogados.
Na ditadura, Bermudes juntou-se a outros gigantes — como Teotonio Vilela, Dalmo de Abreu Dallari, Raphael de Almeida Magalhaes e Sepúlveda Pertence — para preparar o projeto da Lei da Anistia, que perdoou guerrilheiros à esquerda e torturadores à direita. Na redemocratização, integrou a comissão para a reforma do Código de Processo Civil.
Bermudes foi o autor da petição inicial do caso Vladimir Herzog. Segundo o Conjur, o advogado contrariou a família do jornalista e insistiu em propor uma ação civil pedindo que o Judiciário reconhecesse a responsabilidade do Estado na morte de Herzog. Obteve uma decisão paradigmática.
Nas palavras do próprio Bermudes, “foi a primeira vez que o Estado brasileiro, por meio de um de seus poderes, proclamou que o próprio Estado usava a tortura como instrumento de investigação de crimes políticos. A importância da sentença é esta: o reconhecimento pelo Estado de que o Estado torturava. É uma sentença que enaltece, enobrece o Judiciário e o juiz que a proferiu, mais do que o advogado que postulou a jurisdição.”
O Bermudes é hoje um dos últimos escritórios “de dono”. Em vez de uma sociedade típica, em que os sócios aumentam ou perdem participação com base na performance, seus advogados são remunerados com base no princípio de you eat what you kill.
Anos atrás, preparando-se para reduzir sua presença no escritório, Bermudes montou um conselho – hoje com 9 advogados – que passou a ser responsável por gerir o negócio, com Bermudes mantendo poder de veto sobre alguns temas.
Há dois anos, os sócios montaram seis comitês executivos temáticos, que hoje fazem a gestão diária junto com o conselho.
O escritório hoje tem 150 advogados, 300 funcionários e mais de 200 estagiários. Cerca de 80% do trabalho é contencioso e 20%, consultivo.
O volume de trabalho sempre foi bom — mas Bermudes queria sempre mais.
“Clement Attlee [o primeiro ministro que sucedeu Churchill em 1945] fez um discurso no parlamento e disse, ‘Eu sou um homem modesto’, ao que Churchill, num aparte importante, respondeu, ‘Mas o eminente primeiro-ministro só tem razões para ser modesto’. Eu sou modesto porque só tenho razões para ser modesto. Mas por que sou procurado? Sou procurado, para repetir Eça de Queiróz, porque tem tabuleta na porta e as pessoas me procuram. E me procuram porque a gente é conhecido, porque o trabalho da gente é aplaudido, porque acabam noticiando o que a gente fez. Então, sem falsa modéstia, eu sou procurado por isso. Mas não sou suficientemente procurado; eu queria ter mais clientes.”
Apesar de seu fortunoso patrimônio, Bermudes era um homem de hábitos simples.
Morava num apartamento na Avenida Rui Barbosa, no Flamengo, e convidava poucos amigos para frequentar. Era devoto de Nossa Senhora e ia à missa todo sábado na mesma igreja, na Praia de Botafogo.
Na mesma medida em que era admirado e amado pelos amigos, Bermudes também tinha alguns desafetos, e era extremamente “mordaz” com eles, lembra o empresário Paulo Marinho, um de seus grandes amigos. “Como ele era muito inteligente ele construía uma imagem dos desafetos dele muito pesada, sempre com muitos adjetivos,” disse Marinho.
Numa petição contra Ary Carvalho, então o dono do jornal O Dia, “o Sergio esculhambou tanto o Ary que o Ary passou a odiá-lo depois disso.”
Bermudes era um cidadão do mundo. Todos os anos passava pelo menos um mês em Paris, e ia com frequência a Nova York, onde tinha um apartamento. “O apartamento ficava cheio o ano inteiro porque ele o emprestava muito, pra todo mundo,” disse Marinho.
Apesar das vitórias no campo profissional, amigos relatam que Bermudes “sofreu muito” no âmbito pessoal por nunca ter conseguido se abrir publicamente sobre sua sexualidade.
Nascido numa família extremamente conservadora, Bermudes só falava sobre o assunto com os amigos mais íntimos.
Em sua vida amorosa, seu maior romance foi com Leonardo, com quem teve um relacionamento de anos — que, com o tempo, evoluiu para uma relação quase de paternidade. Bermudes chegou a pagar os estudos de Direito de Leonardo e colocá-lo no escritório, mas a experiência não deu certo e hoje Leonardo é psicanalista. Em dado momento, Bermudes iniciou o processo de perfilhação de Leonardo – o reconhecimento voluntário da paternidade –, mas desistiu antes de concluí-lo.
Ciente de sua própria finitude, Bermudes fez inúmeros testamentos ao longo da vida. “Ele colocava alguém que gostava. Depois tirava. Depois colocava de novo. Era muito engraçado,” disse um amigo.
Com a família, Bermudes tinha uma relação distante. Tinha cinco irmãos – três homens e duas mulheres – “mas não era amigo dos irmãos. Ele era amigo dos advogados do escritório. Ali estava a família dele, com quem ele convivia diariamente.”
Rodrigo Tannuri, que trabalhou por décadas no Bermudes e deixou o escritório há dois anos para abrir sua própria firma, disse que o ex-sócio era “muito perfeccionista e não aceitava nada menos que a excelência – mas ao mesmo tempo era uma pessoa muito generosa, que via o escritório inteiro como se todos fossem seus filhos,” disse Tannuri.
Tannuri relembra um episódio que aconteceu quando Bermudes estava prestes a comprar os dois andares do prédio que até hoje sedia o escritório.
“Ele foi mostrar o escritório para alguns advogados e, quando saiu do prédio, tinha um morador de rua caído na calçada. O Sergio, que estava acompanhado por um monte de gente, parou, sentou na calçada e pegou na mão dele e ficou conversando com ele até a ambulância chegar.”
Tannuri disse ainda que Bermudes tinha “uma cultura indisputável, uma oratória impecável, uma escrita suprema, e um conhecimento jurídico inigualável. E ele usava tudo isso na defesa das liberdades individuais, nas causas que ele julgava injusta,” disse ele.
“Ele criou uma forma única como os advogados de contencioso no Brasil inteiro advogam e tentam copiar, sem sucesso. Uma forma combativa, direta, dura quando necessária. O Sergio moldou o contencioso. Nunca existiu na história do Direito um advogado de contencioso tão brilhante.”











