Hoje, “a União finge que recebe, e os estados fingem que pagam,” disse o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, ao apresentar o Projeto de Lei para a renegociação das dívidas estaduais.
Na verdade, alguns poucos estados hoje não pagam nada – e o PL de Pacheco, que finge resolver os problemas, trará novas complicações.
É o que dizem especialistas em finanças públicas com passagem pelo governo federal e secretarias estaduais.
Se aprovado, o novo Programa de Pleno Pagamento de Dívidas dos Estados (Propag) poderá em alguns casos zerar os juros reais das dívidas – ficaria apenas a correção da inflação – dando um incentivo e tanto para os governadores aumentarem despesas e postergarem reformas.
Além disso, o PL alonga o prazo de pagamento para mais 30 anos. Em termos práticos, dá um alívio duplo para os estados endividados, porque os juros mais baixos e o alongamento vão derrubar as parcelas da dívida.
O ônus ficará com o governo federal, que terá menos receitas financeiras e aumento de sua dívida pública.
“O alívio financeiro aos estados tende a se transformar em maiores despesas correntes,” disse um ex-secretário estadual da Fazenda de um dos estados mais endividados. “Um horror, por qualquer ângulo que se observe, o projeto do Pacheco.”
O resultado fiscal primário do setor público também poderá ser afetado, porque haverá uma menor contribuição dos estados no esforço de reequilíbrio das contas – ou seja, mais uma ameaça para o já cambaleante arcabouço fiscal.
Pagarão os brasileiros, na forma de juros mais altos.
“Esse projeto não faz o menor sentido,” comentou um dos maiores especialistas em finanças públicas do País. “O mau pagador não pode ser tratado melhor que o bom pagador.”
Atualmente, os estados pagam à União IPCA + 4% ao ano, ou Selic, o que for menor. Mas os governadores mais afogados em dívidas têm conseguido liminares no STF para adiar os pagamentos – mesmo não cumprindo as contrapartidas previstas no Regime de Recuperação Fiscal (RRF) de 2021.
As dívidas dos estados ultrapassam R$ 800 bilhões. São Paulo é o maior devedor, mas vem pagando em dia. Não é o caso dos outros grandes devedores: Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul – todos atualmente dentro do RRF, assim como Goiás.
No Propag de Pacheco, o endividamento continuaria sendo corrigido por IPCA + 4%, mas haveria quatro possibilidades de abatimento.
- 1 ponto percentual se o estado transferir para a União ativos equivalentes a um valor entre 10% e 20% de sua dívida;
- 1 ponto percentual extra se o estado transferir ativos superiores a 20% de sua dívida;
- 1 ponto percentual se gastar em investimentos – como na infraestrutura, na segurança e na educação – o dinheiro que seria usado para pagar a União;
- 1 ponto percentual se transferir recursos para um novo fundo de equalização, que seria usado em proveito de todos os estados – uma maneira de os menos endividados também ganharem algo.
Tudo somado, o juro real pode desaparecer.
Por fim, a transferência dos ativos também seria usada para abater o principal, reduzindo ainda mais o custo da dívida dos estados.
Segundo as estimativas do Senado, a União perderia R$ 28 bilhões ao ano, em dinheiro de hoje.
Mas para Pacheco, “não é um valor perdido,” porque “será revertido em investimentos.”
“O PL é um presente de mãe para os endividados que não fizeram o ajuste fiscal,” disse Felipe Salto, economista-chefe da Warren Rena e ex-secretário da Fazenda de São Paulo.
Em uma nota técnica assinada com o economista Gabriel Garrote, Salto estima que poderá haver um aumento da dívida bruta do governo federal de 2,4 pontos percentuais do PIB até 2033. Até 2054, considerando-se o possível prazo final estendido para quitação dos passivos com a União, o incremento na dívida poderia atingir 5,4 pontos percentuais do PIB.
Apenas em 2025, o custo estimado para o governo federal é de R$ 33,5 bilhões, considerando-se no cenário juro zero e abatimento de 20% da dívida com a transferência de ativos.
O incentivo à transferência de ativos é outro ponto controverso do Propag – particularmente, como estimar o valor e a qualidade deles, sendo que a União já está sobre uma montanha de ativos problemáticos dos quais não consegue se desfazer para reduzir sua própria dívida.
“Se o ativo é bom, porque não vende para a iniciativa privada?” pergunta um ex-funcionário do Tesouro. “Historicamente, esse tipo de transferência de ativos sempre acabou em dor de cabeça para a União.”
O texto só permite a transferência de participações acionárias em empresas estatais para o governo federal se a transação for autorizada por legislação estadual e federal específica, observou o BTG em um relatório.
“A federalização da Cemig e da Copasa pode ser complexa e demorada, pois exigiria aprovação via lei ordinária pela assembleia legislativa estadual e lei federal pelo Congresso,” disseram os analistas.
Para Jeferson Bittencourt, head de macroeconomia do ASA e ex-secretário do Tesouro, outro ponto negativo do PL é que ele não traz exigências estruturais para a readequação das finanças estaduais. Já no RRF, há uma série de contrapartidas para contenção de despesas, além de privatizações e redução de benefícios fiscais.
“Haveria uma troca dessas contrapartidas por limites nos moldes do arcabouço fiscal,” afirmou Bittencourt.
“Ante o risco moral das recorrentes renegociações da União com estados e das invariáveis derrotas no STF, a troca das contrapartidas pelo limite de gastos é uma opção inferior,” disse o economista. “No RRF as contrapartidas eram estruturais. Mesmo que o estado saísse do regime, ficariam os ganhos de medidas como reforma da previdência, reforma administrativa e desestatização.”
Os estados já haviam ganhado um tremendo alívio na renegociação em 2014. Até então, o indexador era IGP-DI + 6%, podendo chegar a 9% de maneira punitiva, caso houvesse atraso no pagamento.
Nas condições atuais, o governo federal está subsidiando os estados. O Tesouro desembolsa atualmente juros de IPCA + 6,3% para se financiar, bem acima do pago pelos governadores – isso, quando eles pagam.
Além do mais, os estados, de maneira geral, saíram da pandemia com uma situação fiscal confortável, graças a transferências da União e aumento de receitas. Há cinco anos, tinham R$ 40 bilhões em caixa, e hoje têm R$ 214 bi, disse um analista.
Pacheco quer votar o PL antes do recesso para em seguida encaminhá-lo à Câmara.
O projeto tem tudo para abrir uma nova frente de tensão política, disseram fontes que acompanham o tema de perto.
Pacheco pretende se cacifar para disputar o governo de Minas Gerais. Os presidenciáveis Tarcísio de Freitas e Ronaldo Caiado querem mais flexibilidade para gastar. Do outro lado da Esplanada, o Ministro Fernando Haddad tentará evitar a nova rodada de benefícios com dinheiro público.
“Vamos perder seis meses com essa discussão em vez de tratar dos projetos prioritários para o País,” lamentou uma ex-secretária estadual que participou de renegociações anteriores.