O debate econômico sobre a Petrobras continua marcado mais pela ideologia do que pelo reconhecimento das realidades matemáticas.

Jose SerraNo início da semana, o presidente da Associação dos Engenheiros da Petrobras, Felipe Coutinho, publicou um artigo em O Globo listando as 14 principais razões porque a Petrobras deve ser a operadora única do pré-sal.

O artigo foi uma resposta a um projeto do Senador José Serra — que certamente seria tachado de ‘neoliberal’ e ‘vendilhão da Pátria’ se sua biografia não incluísse a presidência da UNE no regime militar e, mais tarde, o exílio — que tenta retirar da Petrobras a obrigação, prevista em lei, de ser sócia de todos os campos do pré-sal (do filé mignon à carne de pescoço, com pelo menos 30% de cada) e de ser a operadora única de todos eles.

A chamada “Lei da Partilha”, aprovada em 2010, afastou os investidores internacionais do Brasil, porque, entre outros motivos, nenhuma petroleira internacional quer comprar, digamos, 70% de um campo e ter que entregar a operação nas mãos de outra empresa, por mais confiável que seja — ou não.  Tem mais: a lei, que pretendia tornar a Petrobras ainda mais forte, acabou por enfraquecê-la. A necessidade de investimento é tal que a empresa foi forçada a se endividar mais do que teria se a lei não tivesse mudado.

“Nós estamos aliviando a Petrobras ao retirar a obrigação,” Serra disse terça-feira na tribuna do Senado, tentando obter uma tramitação mais rápida para o projeto. “Ela não está proibida de operar determinada área, nem de entrar com 30%. Nós estamos retirando a obrigatoriedade. Esse é um projeto que defende a Petrobras. Esse é um projeto que o Governo não percebe que ajuda o Governo!”Elon Musk

A AEPET, como a associação dos engenheiros da Petrobras é conhecida, é uma entidade que ama o Brasil e a Petrobras (talvez a segunda até mais do que o primeiro), mas cujas crenças e discurso se baseiam em ideias vagas e equivocadas de soberania nacional. A ideia de soberania da AEPET é que o Brasil tem que ser ‘dono’ do petróleo, e não pode jamais ‘entregar’ o ‘ouro negro’ aos vilões internacionais. É uma narrativa maniqueísta e sentimental, que sempre reserva a nós, brasileiros, o papel de um Davi em luta contra o diabólico Golias, pobres coitados incapazes de dar certo no mundo cão do capitalismo a menos que embalados pelo útero generoso da proteção legislativa.

Dos anos 50 (quando a Petrobras foi fundada) para cá, o Brasil se transformou de uma grande fazenda em uma economia complexa e heterogênea, que começa no campo, passa pela indústria e cresce cada vez mais nos serviços. A AEPET vai dizer que isso “só foi possível” por causa da Petrobras, como se a empresa tivesse parido o País, e não o contrário.

Ao mesmo tempo, a economia do carbono, da qual dependem as petroleiras, está indo na mesma direção em que foram os dinossauros, graças ao advento da energia solar, eólica, e, finalmente, à promessa cada vez mais tangível representada pela Tesla Motors de Elon Musk, que está transformando o carro elétrico em um negócio de escala.

Enquanto alguns enxergam ‘soberania’ em sermos ‘donos’ do petróleo, outros investem para dominar tecnologias que vão mudar o jogo para sempre.

Ainda assim, para o bem do debate, vamos tentar responder ao presidente da AEPET nos pontos que ele levantou para discussão.

Abaixo, o que ele diz serem os fatos, e o contraponto da coluna:

 

1 – A Petrobras, como operadora única no pré-sal, possibilita maior controle social sobre a taxa de produção e evita a extração predatória.

‘Controle social’ é uma expressão maleável que pode significar o que o interlocutor quiser. Para a coluna, o brasileiro exerce ‘controle social’ sobre o Governo (eleições), e o representante eleito exerce ‘controle social’ sobre os resultados (e eventuais rombos) da Petrobras, podendo colher os louros das vitórias mas sendo obrigado a chupar a manga dos desmandos. Quanto à extração predatória — extrair mais óleo de um campo do que as boas práticas de exploração recomendam, levando o campo a uma exaustão precoce — alguns especialistas acham que a própria Petrobras foi obrigada a fazer isso nos últimos anos, para permitir que o ex-Presidente Lula anunciasse nossa suposta autossuficiência em petróleo em 2006. A tal autossuficiência desapareceu logo em seguida, quando a produção na Bacia de Campos declinou acentuadamente para surpresa geral.

2 – Evita o risco de fraude na medição da vazão do petróleo produzido e a consequente redução da fração partilhada com a União.

A ANP fiscaliza a medição, mas o interessante aqui é a premissa do autor: as operadoras estrangeiras são sempre mentirosas e querem nos passar a perna, enquanto a Petrobras é sempre santa e imaculada. Conta outra.

3 – Impede o risco de fraude na medição dos custos dos empreendimentos e da operação, custos que são contabilizados pela operadora e descontados do petróleo que é partilhado com a União.

Falar de ‘custos do empreendimento’ depois da Lava-Jato? Tá falando sério? (PS: Veja também o contraponto no. 2.)

4 – Para viabilizar uma política industrial que fortaleça fornecedores locais de bens e serviços, em bases competitivas, além de promover tecnologias nacionais.

Tentamos isso, e deu no que deu. A insustentabilidade do balanço da Petrobras — uma empresa que é obrigada pelo Estado a ‘financiar’ o conteúdo nacional ao mesmo tempo em que é obrigada a vender gasolina a preço de Ki-suco — é o que levou à crise atual, noves fora o roubo. Há mais de um ano, a Petrobras atrasa fornecedores e mata, em câmera lenta, a cadeia de conteúdo local que o Governo criou ‘por decreto’. Mais uma prova de que não adianta fazer políticas públicas que ignorem realidades econômicas.

5 – Garante o desenvolvimento tecnológico e as decorrentes vantagens comparativas. A experiência operacional é essencial para garantir o contínuo aprendizado tecnológico.

A Petrobras é, sim, líder na tecnologia de exploração de águas profundas, mas se ela não operar, digamos, metade do pré-sal (deixando isso para as empresas internacionais traiçoeiras), ela não vai ‘ficar para trás.’ E se ficar, é porque nunca foi líder de verdade, e sim um bebê de proveta cujo pai é a reserva de mercado e a mãe, o nacionalismo populista.

6 – Para garantir tecnologia, capacidade operacional e financeira (veja exemplo recente do aporte da China de US$ 10 bilhões) e liderar a produção, na medida do interesse nacional. No pré-sal, a produção alcançou 800 mil barris por dia em tempo recorde.

Parabéns à Petrobras pelo tempo recorde. Mas a produção de petróleo nos EUA cresceu 15% no ano passado, enquanto no Brasil — sob o amparo da lei que a AEPET não quer que mude — cresceu 2%. Culpa da Shell?

7 – A Petrobras assumiu o risco exploratório e já fez enormes investimentos no pré-sal.

Parabéns, de novo, à Petrobras for ter “assumido o risco exploratório” e investido. Curiosamente, é isso o que se espera de uma empresa de petróleo. Próximo mito, por favor.

8 – A operação e a máxima participação da Petrobras nos consórcios permitem o acesso de maior parcela dos resultados econômicos aos brasileiros.

Em tese, quanto mais mercado o Congresso der de presente para uma empresa, mais ela se beneficiará. Mas no caso atual, a Petrobras sofreu com a lei de 2010, que a obrigou a investir em todos os campos do pré-sal e a ser a operadora única, retirando-lhe o benefício da escolha. Isso gerou uma necessidade de investimentos de 225 bilhões de dólares ao longo de cinco anos, e obrigou a Petrobras a se endividar mais. (Este investimento já está sendo reduzido, já que a empresa vai mal de caixa.)

9 – Promove a geração de mais empregos de qualidade no Brasil.

Então, se em vez da Petrobras, uma empresa internacional for operadora no pré-sal, vão contratar quem no lugar de brasileiros?

Cubanos?

10 – A operação e a máxima participação da Petrobras nos consórcios permitem que a maior parcela do petróleo produzido seja propriedade da União, garantindo vantagem geopolítica estratégica.

O petróleo produzido ser “propriedade da União” é um fetiche patrimonialista. A União participa do sucesso exploratório de todas as empresas por meio do bônus de assinatura (que as companhias pagam ao Governo), royalties, impostos e a parcela de barris cedida à União, conhecida no setor como ‘profit oil’. Para a arrecadação da União, Estados e municípios, não faz a menor diferença se quem está pagando é A, B ou C.

Já “vantagem geopolítica estratégica” é ter as Forças Armadas que os EUA têm. Ou então ter “soft power” por meio de ideias inovadoras, uma indústria cultural que conquiste o mundo, uma diplomacia de respeito, ou simplesmente competência. Ou, ainda, ter uma Tesla Motors, cujo sucesso pode aposentar as viúvas do petróleo antes do seu neto entrar na faculdade.

11 – Não há necessidade de novos leilões e de urgência no desenvolvimento de novos campos para atender e desenvolver o mercado interno.

Ué. Não tem pressa para tirar o petróleo do chão? Os desempregados que trabalhavam no setor certamente têm pressa. Os jovens engenheiros saindo da faculdade agora, também. Há urgência, ainda, para a União, Estados e municipíos arrecadarem e poder fechar suas contas. Só quem parece não ter pressa é a AEPET.

12 – Hoje, os riscos são mínimos. A produtividade dos campos é alta e os custos são conhecidos pela companhia. Não há necessidade partilhar riscos que já são bem conhecidos.

A AEPET acha que a Petrobras não precisa compartilhar nada porque dá conta de tudo. Seu balanço — com uma dívida de 400 bilhões de reais — mostra que não dá.  Sem falar que a atual produção do pré-sal — aqueles 800 mil barris/dia comemorados pela AEPET — foi alcançada partilhando o risco. Em todos os campos do pré-sal em produção, a Petrobras possui sócios.

13 – A Petrobras é a companhia da indústria mundial do petróleo com melhores perspectivas futuras, em termos de reservas, da produção de petróleo e derivados e de garantia de acesso a mercados com potencial de crescimento.

Isso pode muito bem ser verdade. Quer mostrar que acredita nesta tese? Compre ações da Petrobras. Mas não tente impedir que um erro de política pública cometido lá atrás seja corrigido agora. Essa correção de rota é essencial para que a Petrobras possa respirar… e suas ações (aquelas que você vai comprar) voltem a se valorizar.

14 – O petróleo não é uma mercadoria qualquer e não existe substituto potencial compatível para a produção de combustíveis líquidos, petroquímicos e fertilizantes.

A cada dia que passa, o petróleo se aproxima mais e mais de ‘uma mercadoria qualquer’. E, mesmo que sua substituição completa ainda demore 50 anos, ninguém está falando em atear fogo na Bacia de Campos. Os que querem mudar a lei só estão propondo matemática e racionalidade econômica. Coisas que farão mais bem à Petrobras do que ufanismo e megalomania.