Os empresários do setor do etanol se reúnem a partir de hoje numa grande conferência em São Paulo. O clima vai ser de lamúrias e comiseração. O setor está mais quebrado que arroz de segunda, e Brasília continua surda aos pedidos de socorro.
No início dos anos 2000, o etanol era visto como uma promessa mundial, e o Brasil, o país mais preparado para capitalizar aquela ideia. O setor sonhava em abrir o mercado norte-americano e globalizar o biocombustível: as vantagens ambientais do etanol — tão óbvias — deveriam apelar a um mundo cada vez mais preocupado em não morrer asfixiado.
Quase 20 anos depois, boa parte das empresas do setor está em recuperação judicial, e o resto, sem perspectiva.
Como chegamos até aqui?
Para entender o desmonte do etanol, é importante monitorar o que os governos fizeram com a CIDE, aquela sobretaxa sobre a gasolina que existe ou deixa de existir ao sabor das circunstâncias políticas do ocupante do Planalto. Como o etanol só faz sentido para o consumidor quando custa menos de 70% do preço da gasolina, a CIDE sempre foi um instrumento do Governo para manter a competitividade do biocombustível, avançar a diversificação da matriz energética e purificar o ar que o brasileiro respira.
Criada em 2001, a CIDE corrige o que os economistas chamam de ‘falha de mercado’: o consumo de gasolina de alguns prejudica a todos na forma de um ar poluído. Como é improvável que a maioria de nós deixe de andar de carro para ajudar o meio ambiente, essa ‘externalidade negativa’ precisa ser desincentivada por uma sobretaxa.
Quando Lula assumiu a presidência em 2003, a CIDE estava em 28 centavos por litro de gasolina. Para o etanol, foi uma época de ouro. Lula fazia juras de amor aos usineiros e achava que o Brasil era a “Arábia Saudita verde.” Em seu segundo mandato, trocou de fetiche: o Brasil descobrira o pré-sal, e o sonho do Presidente agora era que o País se tornasse… a própria Arábia Saudita.
Aí veio a ‘gerentona’.
Com a inflação já fora da meta, Dilma Rousseff começou a segurar o preço da gasolina na bomba. Entre 2010 e 2014, analistas calculam que a Petrobras perdeu US$ 40 bilhões vendendo gasolina e diesel no mercado interno abaixo do preço do mercado internacional. (O resto da estória você já conhece.) Ao mesmo tempo, a venda de carros com motor 1.0 disparou depois da crise de 2008, quando o Governo facilitou o financiamento de automóveis. Com os carros populares vendendo que nem água mineral, a importação de gasolina subiu 400% (também entre 2010 e 2014).
Neste período, o populismo econômico bateu no etanol, lançando as sementes do desastre atual. Como a arrecadação da CIDE vai para o Tesouro e como a Petrobras precisava de alívio no caixa, Dilma foi cortando a CIDE, obrigando o Tesouro a abrir mão de recursos e deixando a Petrobras arrecadar em seu lugar. Assim, quando o Governo cortava a CIDE em 10 centavos, a Petrobras subia a gasolina em 10 centavos e o impacto na inflação era nulo. Em 2012, a CIDE foi zerada.
No início de 2015, louco para encontrar receitas para o ajuste fiscal, o então Ministro Joaquim Levy voltou a cobrar 10 centavos de CIDE — o nível que permanece até hoje.
Pelo menos desde 2016, a indústria tenta convencer o Governo das vantagens de aumentar a CIDE. A melhor hora de agir seria agora: a inflação está comportada e dentro da meta, e o petróleo em queda lá fora, o que significa que um aumento mal seria notado pelo consumidor.
Nos últimos meses, a situação do setor se agravou. Em janeiro deste ano, o Governo voltou com a cobrança de PIS/Cofins sobre o etanol — que havia sido suspensa por quatro anos a partir de 2013. A volta do PIS/Cofins onerou o produto em R$ 0,12 por litro. Resultado: desde o início do ano, o preço recebido pelo usineiro já caiu quase 30%.
Mesmo que não queira salvar os investimentos e os empregos do setor, o Governo ainda tem outro motivo para agir: o acordo internacional sobre mudança climática.
O Brasil se comprometeu na COP a reduzir suas emissões de carbono em 37% até 2025, tendo como base os níveis de 2005. A meta ambiciosa prevê ainda a participação de 18% de biocombustíveis na matriz energética até 2030. Para cumprir esta meta, o País terá que produzir 50 bilhões de litros de etanol carburante por ano; hoje, produz pouco menos de 30 bilhões. O etanol já foi 54% do consumo dos motores a ciclo Otto no Brasil (isto é, motores que rodam com gasolina ou etanol); hoje, é 44%.
O etanol brasileiro hoje já foi além dos cortadores de cana naquela profissão insalubre, ou da queima do pasto para dar lugar à lavoura. Pelo menos no Centro-Sul, a cana já é altamente tecnológica, seja na pesquisa e desenvolvimento de variedades, no uso de drones na hora do plantio e máquinas modernas na colheita. Ainda assim, sem uma intervenção federal que equilibre a concorrência com a gasolina, o negócio não para em pé.
Diferentemente de um subsídio — em que um setor ineficiente precisa de ajuda para evitar que um concorrente mais eficiente ganhe market share — o etanol tem uma desvantagem estrutural (render menos que a gasolina) e uma vantagem estrutural (poluir muito menos). Pesando as duas coisas, a sociedade tem que decidir se preserva essa alternativa — ou se abraça de vez a gasolina em pleno século 21.
Os usineiros também têm que mudar sua postura e seu discurso: em vez de irem a Brasília pedir 10 centavos aqui ou 20 centavos ali, deveriam lutar por uma política clara para o setor, com uma fórmula de preços bem definida que funcione, chova ou faça sol.
Para Adriano Pires, consultor do setor, “a CIDE tinha que ser que nem reunião do Copom: o governo observa o mercado, analisa a perspectiva de preços à frente, e aí decide se deve aumentar ou reduzir em 10 centavos.”
O que está matando o setor é a falta de uma política energética digna do nome, e o reconhecimento de que o etanol merece ser preservado como alternativa ambiental e de diversificação da matriz.
Mas só um Governo corajoso vai trocar a conveniência de curto prazo por um verdadeiro interesse estratégico.