Com seu porte imponente e o elegante chifre no meio da testa, o unicórnio consagrou-se como um dos animais mais belos da zoologia mitológica. É também uma criatura rara e arisca, que quase ninguém tem a sorte de encontrar. Mas como se reconhece um animal que nunca é visto?

Em O Livro dos Seres Imaginários – um fascinante catálogo de animais fantásticos escrito em parceira com Margarita Guerrero – Jorge Luis Borges cita um texto chinês do século IX que explica essa incontornável dificuldade de identificação: “Podemos estar diante de um Unicórnio sem saber com segurança o que ele é. Sabemos que este animal com crina é um cavalo, e que aquele animal com chifres é um touro. Não sabemos como é um Unicórnio.”

12010 702aaaf7 7ca8 11bb 2764 8e5eff97a0ccEm tese, as startups que hoje chamamos de unicórnios seriam mais fáceis de reconhecer. Há um critério para defini-las: empresas que alcançam valor de mercado de US$ 1 bilhão antes da abertura de capital em bolsa. Mas e se as estimativas estiverem erradas?

O WeWork, criação do extravagante empresário israelense Adam Neumann, parecia abençoado pelo chifre único quando se preparava para seu IPO em 2019.

Avaliações infladas sugeriam que a empresa de coworking valeria US$ 47 bilhões. Mas logo surgiram dúvidas sérias sobre a sustentabilidade do negócio e sobre as estranhas práticas de governança de Neumann, um maluco carismático que instaurou no WeWork uma cultura empresarial perdulária e festeira – há relatos de que eram servidas doses de tequila já nas entrevistas de emprego.

Os investidores puxaram o plugue e o IPO foi cancelado. Neumann foi constrangido a renunciar ao controle acionário e ao posto de CEO.

Recentemente, surgiram duas novidades na trajetória da WeWork. Sob controle do Softbank, a empresa, cotada em mais realistas US$ 9 bilhões, estreou na Bolsa em outubro passado.

E agora a Apple TV lançou WeCrashed, uma minissérie em oito capítulos (cinco já na plataforma) sobre as maluquices que emperraram a primeira tentativa de IPO, com Jared Leto no papel de Neumann e Anne Hathaway como sua mulher, Rebekah.

WeCrashed é uma diversão competente – e um tanto perversa: o espectador fica vidrado na ascensão do casal Neumann na expectativa de ver como afinal se dará o seu fracasso.

O fracasso, aliás, já é anunciado no primeiro episódio, cujo roteiro é econômico e claro (tudo o que Neumann nunca foi). A história começa em 18 de agosto de 2019, quando The Wall Street Journal publicou uma matéria detalhada sobre as malversações administrativas de Neumann. O ainda CEO da WeWork é chamado para uma reunião de emergência com o conselho da empresa.

Corta para um longo flashback, doze anos antes: Neumann, em seus primeiros tempos nos Estados Unidos, aparece como uma espécie de caixeiro viajante (embora ele prefira se definir como um “empreendedor serial”), vendendo produtos ridículos que ele imagina inovadores, entre eles um sapato feminino com salto alto retrátil.

Ele conhece Rebekah Paltrow, que então trabalhava como instrutora de ioga (no capítulo seguinte, veremos que ela tentou, sem sucesso, seguir a carreira de atriz, nos passos de sua prima famosa, Gwyneth). Os dois se apaixonam e se casam. Rebekah é uma usina de slogans espirituais e frases de autoajuda, que de algum modo orientam o marido na direção de sua grande realização, o WeWork. Veio dela a missão empresarial da companhia: “Elevar a consciência do mundo”.

Corta de volta para a reunião do conselho: Neumann imaginava que teria apenas de defender a oferta pública de ações. Não: ele estava sendo afastado da startup à qual dedicara incontáveis horas de trabalho (e outras tantas de festa). O capítulo inicial encerra-se aí, com todas as cartas na mesa.

Os episódios seguintes são um desfile de bizarrices: em meio a viagens e farras, Neumann promove a expansão descontrolada da empresa, sublocando prédios por valores que inviabilizam qualquer viabilidade de lucro. Bom vendedor, ele convence clientes e investidores de que sua startup não é um empreendimento imobiliário, e sim uma empresa de tecnologia dedicada a oferecer  experiências comunitárias.

Ainda que seu caricato sotaque israelense irrite, Leto consegue tornar palpáveis as contradições de seu personagem, instigando a dúvida permanente: esse homem é um visionário ou um picareta? No ano passado, em uma entrevista em vídeo  com o The New York Times que rompeu dois anos de silêncio, Neumann contou que teve um encontro com o ator que o interpreta. Leto o teria aconselhado a não ver a minissérie.

Agradecendo repetidas vezes a oportunidade de dar sua versão dos fatos e admitindo erros, Neumann mostrou-se ponderado e humilde ao longo da entrevista, em tudo diferente do showman fanfarrão de WeCrashed. Às vésperas da abertura de capital do WeWork, ele ainda falava com orgulho da empresa que fundou – e da qual saiu com mais de US$ 1 bilhão no bolso. Pois é, unicórnios existem.