Usa-se o prefixo “pré” para indicar antecipação, algo que precede, que supera. Diz-se “pré-histórico” para se referir ao ocorrido antes da história, assim como “pré-sal” remete à área localizada abaixo das profundezas do mar.

A palavra preconceito, portanto, já se explica: algo que vem antes do conceito, isto é, coisa ou emoção que precede o conhecimento. O preconceito, portanto, expressa um entendimento desprovido de conceito: uma opinião ou sentimento carente de base concreta, tomada em ignorância.

Invariavelmente, o preconceito se revela danoso, a começar porque ele oferece um julgamento sem compreensão. Avaliar uma pessoa apenas por sua origem, cor da pele ou patrimônio diminui a todos: o avaliado e, principalmente, o avaliador.  Afinal, não é o frasco que faz o perfume cheirar bem. Para considerar de forma correta alguém ou algo é pressuposto essencial formular um conceito sobre o objeto dessa análise. Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco, lecionou: “Cada homem julga corretamente os assuntos que conhece”.

A civilização – ou melhor, essa belíssima pretensão chamada civilização – reconhece que nós, humanos, somos essencialmente iguais. Pela nossa condição, dotados de qualidades e defeitos. O que de importante vai nos distinguir concentra-se na nossa conduta.

Somos definidos, individualmente, pelos nossos atos. Qualquer julgamento sobre uma pessoa desconsiderando sua singularidade, seu caminho particular, é fruto de preconceito: e, portanto, falho.

Os malefícios decorrentes do preconceito deveriam ser uma platitude, diante da evidência desses singelo postulado: não se pode julgar antes de conhecer.

Infelizmente, contudo, o mundo dos homens ainda não conseguiu superar esse hábito nocivo. Apesar da profusão de exemplos de como o preconceito foi responsável direto pelos mais tristes episódios da história, essa opinião despida de raciocínio lógico, fundada em estereótipos, em generalizações superficiais, marcha, como uma lepra, ao lado da humanidade.

Pior quando esse preconceito se arraiga de tal forma numa sociedade que se insere na sua estrutura, refletindo hábitos dos quais as pessoas sequer se dão conta. Preconceitos muitas vezes silenciosos criam – ou perpetuam – desvantagens para determinados grupos. Uma sociedade que se pretende justa e solidária tem por missão combater qualquer movimento ancorado em preconceitos.

Nos tempos caóticos em que vivemos, numa sociedade estabelecida a partir de relações líquidas e entendimentos rasos, assistimos ao recrudescimento do antissemitismo, uma espécie ancestral de preconceito, culpada direta pelo mais vil e vergonhoso genocídio do século XX, o Holocausto. O movimento assusta por transmitir a impressão de que o passado – um passado abominável – não nos ensinou nada.

O tema ganhou dimensão com o conflito armado entre Israel e o grupo terrorista Hamas, iniciado a partir de um ataque deste último, em 7 de outubro de 2023, contra cidadãos israelenses, em grande parte jovens e crianças. Israel retaliou, até mesmo porque o Hamas fez diversos reféns. A partir daí, veio a guerra. Uma guerra nunca tem verdadeiros vencedores.

No caso, a origem da discórdia possui raízes complexas e antigas, relacionadas, essencialmente, à constituição do Estado de Israel e à sina dos Palestinos, um povo que luta por um lar. O tema espinhoso, de toda forma, não justifica o preconceito. Ao contrário, a ausência de conceitos refletidos e racionais apenas nos afasta de uma solução. Nota-se, com pesar, que a Guerra de Gaza trouxe uma onda de hostilidade aos judeus, simplesmente por serem judeus. Um retrocesso.

A literatura já encarregou de denunciar as desgraças decorrentes do antissemitismo. É isso um homem? de Primo Levi e O Diário de Anne Frank ocupam, merecidamente, local de destaque nas obras que emocionam e ilustram a catástrofe da perseguição irracional aos judeus. As livrarias recebem, agora, outro trabalho abordando o mesmo tormento, mas com a sensibilidade dos nossos dias: Antissemitismo Estrutural, da privilegiada lavra do professor de Direito Constitucional da UERJ Gustavo Binenbojm. (Compre aqui)

Atento ao mundo e em sintonia com essa ameaça aos valores fundamentais do ser humano, Binenbojm se propõe a explicar as origens históricas desse preconceito para concluir pela necessidade de se “desestruturar” o antissemitismo.

Citando passagens como o julgamento de Cristo, os éditos romanos contra os judeus, o julgamento de Dreyfuss, o horror dos campos nazistas e a visita de João Paulo II a uma sinagoga – a primeira de um Papa em dois mil anos, ocasião na qual disse que “os judeus são os irmãos mais velhos dos cristãos” – Binenbojm oferece um panorama da rota triste do antissemitismo. O autor lembra de como é preciso conhecê-lo.

Com a profundidade que o distingue como intelectual, Binenbojm explicita como se materializa o antissemitismo. O livro alerta, também, ao que muitos denominam “humor”, mas que, na verdade, funciona como espasmo de racismo. A civilização deve estar atenta a todas as formas de preconceito, ainda que venham mascaradas.

Binenbojm oferece uma espécie de cartilha para a instrução “anti-antissemita” partindo de uma ideia tão simples quanto potente: antes de proferir uma opinião sobre o povo judeu, deve-se entender seus valores – uma mensagem que carrega a esperança de ultrapassar essa mancha a partir da educação.

Para combater a estruturação do preconceito faz-se necessário conhecer o fenômeno. Só isso já bastaria para ler Antissemitismo Estrutural, a fim de formar conceitos, emergindo do espaço desolador que existe antes dele. Do contrário, na ignorância, estaremos condenados a um ciclo estúpido.

Nelson Mandela, nascido numa sociedade que institucionalizou o preconceito, se tornou um símbolo ao combater ódio com amor.  “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar,” ensinou Mandela.

José Roberto de Castro Neves é advogado, professor universitário, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras.